· Cidade do Vaticano ·

Francisco celebrou o Dia mundial dos pobres
Durante a missa o convite a interromper a «surdez interior» face aos débeis e aos últimos

Nas esquinas das cidades
para ouvir o brado da miséria e da dor

 Nas esquinas das cidades  para ouvir o brado da miséria e da dor  POR-046
17 novembro 2022

Com a exortação a «ir às esquinas das cidades», àquelas mais «escondidas» e «escuras», pois «é lá que se vê tanta miséria e tanta dor» o Papa Francisco celebrou na manhã de domingo, 13 de novembro, Dia mundial dos pobres, presidindo à Eucaristia na basílica de São Pedro.

Enquanto alguns falam da beleza exterior do templo e admiram as suas pedras, Jesus desperta a atenção para os acontecimentos conturbados e dramáticos que marcam a história humana. De facto, enquanto o templo construído pelas mãos do homem passará, como passam todas as coisas deste mundo, é importante saber discernir o tempo que vivemos, para permanecer discípulos do Evangelho mesmo no meio das convulsões da história.

E, para nos indicar o modo de discernir, o Senhor oferece-nos duas exortações: não vos deixeis enganar e dai testemunho.

A primeira coisa que Jesus diz aos seus ouvintes, preocupados «quando» e «como» ocorrerão os eventos aterradores de que fala, é: «tende cuidado em não vos deixardes enganar, pois muitos virão em meu nome dizendo: “Sou eu”; e ainda: “O tempo está próximo”. Não os sigais» (Lc 21, 8). E acrescenta: «Quando ouvirdes falar de guerras e revoltas, não vos alarmeis» (21, 9). E isto vem mesmo a propósito no momento atual. Mas de que engano nos quer livrar Jesus? Da tentação de ler os factos mais dramáticos de modo supersticioso ou catastrófico, como se estivéssemos já perto do fim do mundo não valendo a pena empenhar-nos em algo de bom. Se assim pensarmos, deixamo-nos guiar pelo medo e depois vamos, com morbosa curiosidade, procurar talvez respostas nas parvoíces de magos ou horóscopos que nunca faltam — e hoje muitos cristãos vão consultar os magos, procuram o horóscopo como se fosse a voz de Deus —; ou então abandonamo-nos a teorias fantasiosas propostas por qualquer «messias» da última hora, geralmente sempre derrotistas e intrigantes — também a psicologia da intriga é ruim, faz-nos mal —. Aqui não está o Espírito do Senhor, nem no ir consultar os «gurus» nem neste espírito de intriga. Aqui não está lá o Senhor. Jesus adverte-nos: «Não vos deixeis enganar», não vos deixeis encandear por uma credulidade ingénua, nem enfrenteis os acontecimentos movidos pelo medo, mas aprendei a ler os factos com os olhos da fé, certos de que, estando perto de Deus, «não se perderá um só cabelo da vossa cabeça» (21, 18).

Se é verdade que a história humana está constelada de eventos dramáticos, situações dolorosas, guerras, revoluções e calamidades, é igualmente verdade — diz Jesus — que tudo isto não é o fim (cf. 21, 9); não são um bom motivo para se deixar paralisar pelo medo ou ceder ao derrotismo de quem pensa que já está tudo perdido e é inútil empenhar-se na vida. O discípulo do Senhor não se deixa atrofiar pela abdicação, não cede ao desânimo nem mesmo nas situações mais difíceis, porque o seu Deus é o Deus da ressurreição e da esperança, que sempre levanta: com Ele sempre se pode levantar o olhar, voltar a começar e pôr-se a caminho. Assim, perante a provação — qualquer provação, seja ela cultural, histórica ou pessoal —, o cristão interroga-se: «O que é que me está a dizer o Senhor através deste momento de crise?» Também eu me coloco esta pergunta, hoje, perante esta terceira guerra mundial: O que é que nos está a dizer o Senhor? Que nos diz o Senhor? E, sempre que sucedem eventos maléficos que geram pobreza e sofrimento, o cristão pergunta-se: «O que é que posso, concretamente, fazer de bom?». Não deve fugir, mas interrogar-se: Que me diz o Senhor e que posso eu fazer de bom?

Não é por acaso que a segunda exortação de Jesus — depois desta: «não vos deixeis enganar» — seja positiva. Diz Ele: «Tereis ocasião de dar testemunho» (21, 13). Ocasião de dar testemunho. Quero sublinhar esta palavra esplêndida: ocasião. Significa ter a oportunidade de fazer algo de bom a partir das circunstâncias da vida, mesmo se estas não forem as ideais. É uma bela arte tipicamente cristã: não se deixar ficar vítima daquilo que sucede — o cristão não é vítima e a psicologia do «vitimismo» é má, faz-nos mal —, mas aproveitar a oportunidade que se esconde em tudo o que nos acontece, o bem que é possível (aquele pouco de bem que for possível fazer) e construir mesmo a partir de situações negativas. Cada crise é uma possibilidade e proporciona ocasiões de crescimento. Porque cada crise abre-se à presença de Deus, à presença da humanidade. Mas que faz o espírito mau? Quer que transformemos a crise em conflito; e o conflito é sempre fechado, sem horizonte nem via de saída. Assim não! Vivamos a crise como pessoas humanas, como cristãos, não a transformando em conflito, porque cada crise é uma possibilidade e proporciona ocasiões de crescimento. Apercebemo-nos disto, repassando a nossa história pessoal: com frequência, na vida, os passos em frente mais importantes foram dados precisamente no âmbito dalgumas crises, situações de prova, de perda de controle, de insegurança. Compreendemos, assim, o convite que Jesus faz hoje, diretamente, a mim, a ti, a cada um de nós: que fazes quando vês ao teu redor factos turbulentos, quando se levantam guerras e conflitos, quando sucedem terremotos, carestias e pestilências? Eu que faço? Tu que fazes? Procuras distrair-te para não pensares nisso? Divertes-te para não te envolveres? Segues a estrada da vida mundana, de não assumir nem tomar a peito estas situações dramáticas? Viras a cara para o outro lado para não ver? Adequas-te, submisso e resignado, ao que acontece? Ou tais situações tornam-se ocasião para testemunhares o Evangelho? Hoje cada um de nós deve questionar-se à vista de tantas calamidades, perante esta terceira guerra mundial tão cruel, frente à fome de tantas crianças, de tanta gente: Poderei eu desperdiçar, desperdiçar dinheiro, desperdiçar a minha vida, desperdiçar o sentido da minha vida, sem me encher de coragem para seguir em frente?

Irmãos e irmãs, neste Dia Mundial dos Pobres, a Palavra de Jesus é uma forte advertência para romper esta surdez interior que todos nós temos e que nos impede de ouvir o grito de sofrimento, sufocado, dos mais frágeis. Também hoje vivemos em sociedades feridas e assistimos, tal como nos disse o Evangelho, a cenários de violência (basta pensar nas crueldades que está a sofrer o povo ucraniano), injustiça e perseguição; mais, devemos enfrentar a crise gerada pelas alterações climáticas e pela pandemia, que deixou atrás dela um rasto de perturbações não apenas físicas, mas também psicológicas, económicas e sociais. Também hoje, irmãos e irmãs, vemos levantar-se povo contra povo e assistimos, angustiados, à frenética ampliação dos conflitos, à calamidade da guerra, que provoca a morte de tantos inocentes e multiplica o veneno do ódio. Também hoje, mais do que ontem, muitos irmãos e irmãs, provados e atribulados, emigram à procura de uma esperança, e muitas pessoas vivem na precariedade pela falta de emprego ou por condições laborais injustas e indignas. E também hoje, irmãos e irmãs, as vítimas mais penalizadas de qualquer crise são os pobres. Mas, se o nosso coração estiver blindado e indiferente, não conseguiremos ouvir o seu flébil grito de dor, chorar com eles e por eles, ver quanta solidão e angústia se escondem mesmo nos cantos esquecidos das nossas cidades. É preciso ir aos cantos das cidades, aqueles ângulos escondidos, escuros: lá se vê tanta miséria, tanto sofrimento e tanta pobreza descartada.

Façamos nosso o convite forte e claro do Evangelho a não nos deixarmos enganar. Não demos ouvidos aos profetas da desgraça; não nos façamos encantar pelas sereias do populismo, que instrumentaliza as necessidades do povo, propondo soluções demasiado fáceis e precipitadas. Não sigamos os falsos «messias» que, em nome do lucro, proclamam receitas úteis apenas para aumentar a riqueza de poucos, condenando os pobres à marginalização. Ao contrário, demos testemunho: acendamos luzes de esperança no meio da escuridão; nas situações dramáticas, aproveitemos a ocasião para testemunhar o Evangelho da alegria e construir um mundo fraterno, pelo menos um pouco mais fraterno; empenhemo-nos corajosamente em prol da justiça, da legalidade e da paz, permanecendo sempre ao lado dos mais frágeis. Não fujamos para nos defender da história, mas lutemos para dar a esta história que estamos a viver um rosto diferente.

E onde havemos de encontrar a força para tudo isto? No Senhor. Na confiança em Deus, que é Pai e vela por nós. Se Lhe abrirmos o coração, Ele aumentará em nós a capacidade de amar. Este é o caminho: crescer no amor. De facto Jesus, depois de ter falado de cenários de violência e terror, conclui dizendo: «Não se perderá um só cabelo da vossa cabeça» (21, 18). Mas que significa isto? Que Ele está connosco, Ele é o nosso guardião, Ele caminha connosco. Tenho eu esta fé? Tu tens esta fé de que o Senhor caminha contigo? Devemos repetir sempre isto para nós mesmos, especialmente nos momentos mais dolorosos: Deus é Pai e está ao meu lado, conhece-me e ama-me, vela por mim, não dorme, cuida de mim e, com Ele, nem um só cabelo da minha cabeça se perderá. E eu, como respondo a isto? Ao ver os irmãos e as irmãs que passam necessidade, ao ver esta cultura do descarte que descarta os pobres, que descarta as pessoas com menos possibilidades, que descarta os idosos, que descarta os nascituros... Ao ver tudo isto, que sinto e que devo fazer como cristão neste momento?

Amados por Ele, decidamo-nos a amar os filhos mais descartados. Ali está o Senhor. Segundo uma antiga tradição (mesmo aqui, nas aldeias da Itália, ainda há alguém que a mantém), na ceia de Natal, deve-se deixar um lugar vazio para o Senhor, que certamente baterá à porta na pessoa de um pobre necessitado. E o teu coração, tem sempre um lugar livre para tais pessoas? O meu coração tem um lugar livre para tais pessoas? Ou estamos tão atarefados com os amigos, os eventos sociais, as obrigações, que nunca temos um lugar livre para tais pessoas? Cuidemos dos pobres, em quem está Cristo, que Se fez pobre por nós (cf. 2 Cor 8, 9). Ele identifica-Se com o pobre. Sintamo-nos interpelados para que nem um só cabelo da cabeça deles se perca. Não podemos ficar — como aqueles de quem fala o Evangelho — a admirar as belas pedras do templo, sem reconhecer o verdadeiro templo de Deus, o ser humano, o homem e a mulher, especialmente o pobre, em cujo rosto, em cuja história, em cujas feridas está Jesus. Foi Ele que o disse… Nunca o esqueçamos!