Ser «profetas de esperança», na consciência de que «a família continua a ser uma “gramática antropológica” insubstituível dos afetos humanos fundamentais», foi o encorajamento dirigido pelo Papa Francisco à comunidade académica do Pontifício Instituto teológico João Paulo ii para as ciências do matrimónio e da família, recebida em audiência na manhã de 24 de outubro, na Sala Clementina.
Estimados irmãos e irmãs
bom dia e bem-vindos!
Sinto-me feliz por me encontrar convosco que formais a comunidade académica do Instituto Teológico João Paulo ii para as ciências do matrimónio e da família. Agradeço ao Arcebispo Vincenzo Paglia — considero-o o Prémio Nobel da criatividade! — o vosso Grão-Chanceler, as palavras que me dirigiu. Saúdo o Reitor, monsenhor Philippe Bordeyne, os vice-reitores das secções extra-urbe, os distintos professores e todos vós, caros estudantes, juntamente com os casais que iniciaram o curso de formação permanente no Instituto. A vossa representação internacional evidencia a amplitude e a riqueza da rede que pertence ao Instituto; esta representação é um recurso para a Igreja e para a sociedade.
Passaram-se cinco anos desde que, com o Motu proprio Summa familiae cura, desejei “investir” nesta herança deixada por São João Paulo ii , que fundou o Instituto em 1981. Pretendi dar-lhe um novo vigor e um desenvolvimento mais amplo, a fim de responder aos desafios que surgiram no início do terceiro milénio. Este desenvolvimento desejado — garantido pela qualidade académica nas disciplinas teológicas e nas ciências humanas e sociais — parece-me particularmente importante, porque integra as competências necessárias para discernir os valores relacionais próprios da constelação familiar. A própria teologia, para estar à altura desta expansão, é chamada a elaborar uma visão cristã da genitorialidade, da filialidade, da fraternidade — e não apenas do vínculo conjugal — que corresponda à experiência familiar, dentro do horizonte de toda a comunidade humana e cristã. A cultura dos avós também é muito importante. Com efeito, a cultura da fé é chamada a medir-se, sem ingenuidade nem submissão, com as transformações que marcam a consciência atual da relação entre homem e mulher, entre amor e geração, entre família e comunidade.
Aprecio e encorajo o vosso empenho em levar por diante com coerência e criatividade o projeto magisterial que inspira a sua herança e a sua atualização. É um compromisso que, dia após dia, enche de conteúdo o título de “pontifício” atribuído ao Instituto, para ser compreendido no seu significado, ou seja, servir a Igreja nas pegadas do ministério de Pedro é o dom que recebe e, ao mesmo tempo, transmite. Por isso que seria um grave erro ler a sua ligação renovada com o Magistério vivo em termos de oposição à missão recebida com a sua instituição original. Na realidade, a semente cresce e gera flores e frutos. Se a semente não crescer, permanece lá como uma peça de museu, mas não cresce.
A missão da Igreja exige hoje urgentemente a integração da teologia do vínculo conjugal com uma teologia mais concreta da condição familiar. As inéditas turbulências, que nestes tempos põem à prova todos os vínculos familiares, exige um discernimento cuidadoso para captar os sinais da sabedoria e misericórdia de Deus. Não somos profetas de desventura, mas de esperança. Portanto, ao considerar os motivos da crise, nunca perderemos de vista também os sinais consoladores, por vezes comoventes, das capacidades que os laços familiares continuam a mostrar: a favor da comunidade de fé, da sociedade civil, da convivência humana. Todos vimos como são valiosos, em tempos de vulnerabilidade e coação, a tenacidade, a resiliência, a cooperação dos laços familiares.
A família continua a ser uma “gramática antropológica” insubstituível dos afetos humanos fundamentais. A força de todos os laços de solidariedade e amor aprende os seus segredos ali, na família. Quando esta gramática é negligenciada ou perturbada, toda a ordem das relações humanas e sociais sofre as suas feridas. E, por vezes, são feridas profundas, muito profundas.
Por exemplo: não vai porventura o voluntariado social buscar a estes laços generativos e fraternos de amor os símbolos e as modalidades das suas melhores relações? A proteção dos indefesos não tem a sua raiz no cuidado com o gerado? A fraternidade não é uma experiência fácil, claro, mas haverá porventura melhor forma do que nascer como irmãos e irmãs para compreender o significado de ser — todos nós — igualmente humanos?
Eis então, irmãos e irmãs, quais são as fronteiras do desafio que nos impele a retomar o fio da irradiação de todos os componentes do amor familiar — e não apenas do casal — para toda a sociedade. A qualidade do matrimónio e da família decide a qualidade do amor do indivíduo e os laços da própria comunidade humana. Portanto, é responsabilidade tanto do Estado como da Igreja ouvir as famílias, com vista a uma proximidade afetuosa, solidária e efetiva: apoiá-las no trabalho que já fazem para todos, encorajando a sua vocação para um mundo mais humano, ou seja, mais solidário e mais fraterno. Devemos preservar a família, mas não aprisioná-la, devemos fazê-la crescer como deve crescer. Cuidado com as ideologias que se intrometem para explicar a família de um ponto de vista ideológico. A família não é uma ideologia, é uma realidade. E uma família cresce com a vitalidade da realidade. Mas quando as ideologias vêm para explicar ou envernizar a família, o que acontece é que tudo se destrói. Há uma família que tem esta graça de homem e mulher que se amam e geram, e para compreender a família devemos ir sempre ao concreto, não às ideologias. As ideologias arruínam, as ideologias imiscuem-se para fazer um caminho de destruição. Cuidado com as ideologias!
Não devemos esperar que a família seja perfeita para cuidar da sua vocação e encorajar a sua missão. O matrimónio e a família terão sempre imperfeições, enquanto não estivermos no Céu. Aos recém-casados digo sempre: se quiserdes, discuti, como quiserdes, mas desde que façais as pazes antes de o dia acabar. Esta capacidade de “fazer as pazes” que a família tem perante as dificuldades é uma graça, porque se não fizer as pazes, a “guerra fria” do dia seguinte é perigosa. No entanto, entreguemos a nossa imperfeição ao Senhor, pois obter da graça do sacramento uma bênção para a criatura a quem foi confiada a transmissão do sentido da vida — não apenas da vida física — é o “possível” de Deus.
Muito, nesta sociedade cheia de fendas, depende da alegria redescoberta da aventura familiar inspirada por Deus. Durante trinta anos, a encarnação do Filho Unigénito consistiu em habitar e enraizar-se nos vínculos familiares e comunitários da sua condição humana. Não foi um simples tempo de “espera”, foi um tempo de “compreensão” com a condição humana mais comum, habitando com o olhar fixo nas “coisas do Pai” (cf. Lc 2, 49). Quero contar-vos uma experiência que tive na praça [de São Pedro], quando fazia a saudação na praça antes da pandemia. Um casal, pareciam jovens — 60 anos de matrimónio! — sim, eram jovens, porque na altura ela tinha 18 anos e ele tinha 20, e eu disse: “Mas não vos entediais depois de tantos anos? Estais bem?”. Entreolharam-se, eu fiquei parado, depois voltaram-se para mim, chorando: “Amamo-nos”. Foi a resposta após 60 anos. Foi a melhor, a mais bela teologia sobre a família que já vi.
Que o Senhor acompanhe a paixão da vossa fé e o rigor da vossa inteligência, na formidável tarefa de apoiar, cuidar, alegrar — sim, também alegrar — esta bênção criatural e eclesial que é a família. Regozijo-me por saber e perceber que também vos dedicais a esta tarefa através da maturação de uma atmosfera familiar e de um espírito sinodal da própria comunidade académica. Que a Mãe do Senhor, que mais do que qualquer um de nós é especialista neste vínculo entre o mistério salvífico da nova criatura e a condição familiar do afeto humano, vos acompanhe e vos proteja. De coração abençoo-vos, e como de costume — porque o Papa é um mendigo — peço-vos por favor que rezeis por mim. Obrigado!