Em nome de Deus
Na tarde de 15 de setembro, o Papa Francisco chegou ao Palácio da independência proveniente da nunciatura de Nur-Sultan, para participar no encerramento do sétimo Congresso de líderes de religiões mundiais e tradicionais. Após a leitura da Declaração final dos participantes, o Pontífice proferiu o seu último discurso em solo cazaque. Eis as palavras pronunciadas pelo bispo de Roma.
Amados Irmãos e irmãs!
Caminhamos juntos. Obrigado por terem vindo de diversas partes do mundo, trazendo aqui a riqueza das vossas crenças e das vossas culturas. Obrigado por terdes vivido intensamente estes dias de partilha, trabalho e empenho sob o signo do diálogo, ainda mais precioso neste período tão difícil sobre o qual grava, para além da pandemia, a loucura insensata da guerra. Há demasiados ódios e divisões, demasiada falta de diálogo e compreensão do outro: isto, no mundo globalizado, é ainda mais perigoso e escandaloso. Não podemos avançar assim, ora unidos ora separados, ora interligados ora dilacerados por demasiadas desigualdades. Obrigado, pois, pelos esforços que visam a paz e a unidade. Obrigado às Autoridades locais, que nos acolheram, preparando e organizando com grande cuidado este Congresso, e à população do Cazaquistão, amiga e corajosa, capaz de abraçar as outras culturas preservando a sua nobre história e as suas preciosas tradições. Kiop raqmet! Bolshoe spasibo! Thank you very much!
A minha visita, que está agora a terminar, teve como lema Mensageiros de paz e de unidade. Está no plural, porque o caminho é comum. E este sétimo Congresso, que o Altíssimo nos deu a graça de viver, marcou uma etapa importante. Desde o seu nascimento em 2003, o evento teve como modelo o Dia de Oração pela paz no mundo, convocado no ano de 2002 por João Paulo ii , em Assis, a fim de reafirmar a contribuição positiva das tradições religiosas para o diálogo e a concórdia entre os povos. Depois do que sucedeu a 11 de setembro de 2001, era necessário reagir, e reagir juntos, ao clima incendiário a que a violência terrorista queria incitar e que se arriscava a fazer da religião um fator de conflito. Entretanto o terrorismo de matriz pseudorreligiosa, o extremismo, o radicalismo, o nacionalismo amantado de sacralidade ainda fomentam medos e preocupações a respeito da religião. Assim foi providencial reencontrarmo-nos nestes dias e reafirmarmos a sua essência verdadeira e irrenunciável.
A propósito, a Declaração do nosso Congresso afirma que o extremismo, o radicalismo, o terrorismo e qualquer outro incentivo ao ódio, à hostilidade, à violência e à guerra – seja qual for a motivação ou objetivo que se proponham – nada têm a ver com o autêntico espírito religioso e devem ser rejeitados nos termos mais decididos que for possível (cf. n. 5); condenados, sem «se» nem «mas». Além disso, com base no facto de que o Omnipotente criou todas as pessoas iguais, independentemente da sua pertença religiosa, étnica ou social, concordamos em afirmar que o respeito mútuo e a compreensão devem ser considerados essenciais e imprescindíveis no ensinamento religioso (cf. n. 13).
O Cazaquistão, no coração deste grande e decisivo continente asiático, proporcionou-nos o local natural para nos encontrarmos. A sua bandeira lembrou-nos a necessidade de preservar uma saudável relação entre política e religião. De facto, se a águia dourada, presente no estandarte, evoca a autoridade terrena, lembrando antigos impérios, o fundo azul evoca a cor do céu, a transcendência. Há, portanto, uma ligação saudável entre política e transcendência, uma sã coexistência que mantém distintos os dois âmbitos. Distinção, não confusão nem separação. “Não” à confusão, para bem do ser humano que precisa, como a águia, de um céu livre para voar, de um espaço livre e aberto para o infinito que não seja limitado pelo poder terreno. Uma transcendência que, entretanto, não deve ceder à tentação de se transformar em poder; caso contrário, o céu precipitaria sobre a terra, o Além divino ficaria preso no hoje terrestre, e o amor ao próximo em escolhas de parte. Por isso, “não” à confusão; mas «não» também à separação entre política e transcendência, pois as mais altas aspirações humanas não podem ser excluídas da vida pública e relegadas para o âmbito meramente privado. Por isso, há de ser sempre e em toda parte tutelado quem deseja exprimir, de modo legítimo, o próprio credo. Contudo, ainda hoje quantas pessoas são perseguidas e discriminadas pela sua fé! Pedimos veementemente aos governos e às competentes organizações internacionais que assistam os grupos religiosos e as comunidades étnicas que sofreram violações dos seus direitos humanos e liberdades fundamentais, e violências da parte de extremistas e terroristas, inclusive em consequência de guerras e conflitos militares (cf. n. 6). É preciso sobretudo empenhar-se para que a liberdade religiosa seja, não um conceito abstrato, mas um direito concreto. Defendamos para todos o direito à religião, à esperança, à beleza… ao Céu. Pois não só o Cazaquistão — como proclama o seu hino — é um «sol dourado no céu», mas também cada ser humano: cada homem e mulher, na sua irrepetível unicidade, se estiver em contacto com o divino, é capaz de irradiar uma luz particular sobre a terra.
Por isso a Igreja Católica, que não se cansa de anunciar a dignidade inviolável de cada pessoa, criada «à imagem de Deus» (cf. Gn 1, 26), crê também na unidade da família humana. Crê que «os homens constituem todos uma só comunidade; todos têm a mesma origem, pois foi Deus quem fez habitar em toda a terra o inteiro género humano» ( Conc. Ecum. Vat. ii , Decl. Nostra aetate, 1). Por este motivo, desde o início do presente Congresso, a Santa Sé, especialmente através do Dicastério para o Diálogo Inter-religioso, participou ativamente nele. E quer continuar assim: o caminho do diálogo inter-religioso é um caminho comum de paz e para a paz, e, como tal, é necessário e sem retorno. O diálogo inter-religioso já não é apenas uma oportunidade, mas um serviço urgente e insubstituível à humanidade, para louvor e glória do Criador de todos.
Irmãos, irmãs, pensando neste caminho comum, pergunto-me: Qual é o nosso ponto de convergência? João Paulo ii , que visitou o Cazaquistão há vinte e um anos, neste mesmo mês, tinha afirmado que «todos os caminhos da Igreja levam ao homem» e que o homem é «o caminho da Igreja» (Carta enc. Redemptor hominis, 14). Hoje quero afirmar que o homem é também o caminho de todas as religiões. Sim, o ser humano concreto, debilitado pela pandemia, prostrado pela guerra, ferido pela indiferença! O homem, criatura frágil e maravilhosa, que, «sem o Criador, se obscurece» ( Conc. Ecum. Vat. II , Const. past Gaudium et spes, 36) e, sem os outros, não subsiste! Antes de tomar decisões importantes, olhe-se mais para o bem do ser humano do que para os objetivos estratégicos e económicos, para os interesses nacionais, energéticos e militares. Para se fazer escolhas que sejam verdadeiramente grandes, olhe-se para as crianças, os jovens e o seu futuro, para os idosos e a sua sabedoria, para a gente comum e as suas reais necessidades. E nós ergamos a voz para gritar que a pessoa humana não se reduz ao que produz e ganha; que deve ser acolhida e nunca descartada; que a família — em língua cazaque, «ninho da alma e do amor» — é o álveo natural e insubstituível que deve ser protegido e promovido para que cresçam e maturem os homens e as mulheres de amanhã.
As grandes sabedorias e religiões são chamadas a testemunhar, a todos os seres humanos, a existência de um património espiritual e moral comum, que assenta sobre dois pilares: a transcendência e a fraternidade. A transcendência, o Além, a adoração. É belo pensar que todos os dias milhões e milhões de homens e mulheres, de várias idades, culturas e condições sociais, se reúnem para rezar em inúmeros locais de culto. É a força escondida que faz avançar o mundo. E, depois, a fraternidade, o outro, a proximidade: pois não pode professar verdadeira adesão ao Criador quem não ama as suas criaturas. Este é o espírito que permeia a Declaração do nosso Congresso, da qual — para concluir — gostaria de destacar três palavras.
A primeira é a síntese de tudo, a expressão de um grito do coração, o sonho e a meta do nosso caminho: paz! Beybitşilik, mir, peace! A paz é urgente, porque hoje qualquer conflito militar ou foco de tensão e confronto não pode deixar de provocar um nefasto “efeito dominó”, comprometendo seriamente o sistema de relações internacionais (cf. n. 4). Mas a paz «não é ausência de guerra, nem se reduz ao estabelecimento do equilíbrio entre as forças adversas; nem resulta de uma dominação despótica», mas é «obra da justiça» (Gaudium et spes, 78). Brota, pois, da fraternidade, cresce através da luta contra a injustiça e as desigualdades, constrói-se estendendo a mão aos outros. Nós, que cremos no Criador de todos, devemos estar na vanguarda da difusão da convivência pacífica. Devemo-la testemunhar, pregar, implorar. Por isso, a Declaração exorta os líderes mundiais a cessarem em todo o lado conflitos e derramamentos de sangue e a abandonarem retóricas agressivas e destrutivas (cf. n. 7). Pedimos-vos, em nome de Deus e para bem da humanidade: empenhai-vos pela paz, não pelos armamentos! Só servindo a paz é que permanecerá grande na história o vosso nome.
Se falta a paz, é porque falta atenção, ternura e capacidade de gerar vida. Consequentemente, aquela deve ser procurada envolvendo mais — e é a segunda palavra — a mulher. Porque a mulher presta cuidados e dá vida ao mundo: é caminho para a paz. Por isso defendemos a necessidade de proteger a sua dignidade e melhorar a sua condição social, enquanto membro de igual direito na família e na sociedade (cf. n. 23). Às mulheres, devem também ser confiadas funções e responsabilidades maiores. Quantas opções de morte seriam evitadas se estivessem precisamente as mulheres no centro das decisões! Empenhemo-nos para que sejam mais respeitadas, reconhecidas e envolvidas.
Finalmente, a terceira palavra: os jovens. São eles os mensageiros de paz e de unidade de hoje e de amanhã. São eles, mais do que quaisquer outros, que invocam a paz e o respeito pela casa comum da criação. Enquanto as lógicas de domínio e exploração, o açambarcamento de recursos, os nacionalismos, as guerras e as áreas de influência delineiam um mundo velho, os jovens rejeitam um mundo fechado aos seus sonhos e esperanças. E de igual modo se pode dizer que religiosidades rígidas e sufocantes não pertencem ao futuro, mas ao passado. A pensar nas novas gerações, afirmou-se aqui a importância da instrução, que reforça o recíproco acolhimento e a convivência respeitosa entre religiões e culturas (cf. n. 21). Na mão dos jovens coloquemos oportunidades de instrução, não armas de destruição! E escutemo-los, sem medo de nos deixar interpelar por eles. Sobretudo construamos um mundo a pensar neles!
Irmãos, irmãs, a população do Cazaquistão, aberta ao amanhã e testemunha de tantos sofrimentos passados, oferece-nos, com a sua multirreligiosidade e multiculturalidade extraordinária, um exemplo de futuro. Convida-nos a construí-lo sem esquecer a transcendência e a fraternidade, a adoração do Altíssimo e o acolhimento do outro. Avancemos assim, caminhando juntos na terra como filhos do Céu, tecedores de esperança e artesãos de concórdia, mensageiros de paz e de unidade!