O Papa Francisco chegou a Quebec na tarde de quarta-feira, 27 de julho, proveniente de Edmonton. Na residência oficial da governadora-geral do Canadá teve lugar o encontro com as autoridades civis do país, com os representantes dos povos indígenas e com os membros do corpo diplomático. Nessa circunstância, o Pontífice dirigiu-lhes o discurso que passamos a publicar.
Senhora Governadora-Geral
Senhor Primeiro-Ministro
Distintas Autoridades civis
e religiosas
Amados Representantes
das populações indígenas
Ilustres Membros
do Corpo Diplomático
Senhoras e Senhores!
Saúdo-vos cordialmente e agradeço à senhora Mary Simon e ao senhor Justin Trudeau as suas amáveis palavras. Estou feliz por me dirigir a vós, que tendes a responsabilidade de servir os habitantes deste grande país que, “de mar a mar”, oferece um património natural extraordinário. Dentre as muitas belezas, penso nas imensas e espetaculares florestas de aceráceas, que tornam única e colorida a paisagem canadiana. Quero aproveitar precisamente o símbolo por excelência destas terras, a folha de acerácea, que dos brasões do Québec se espalhou rapidamente até se tornar o emblema que sobressai na bandeira do país.
Se isto aconteceu em tempos bastante recentes, as aceráceas guardam a memória de muitas gerações passadas, bem antes de os colonos chegarem ao solo canadiano. As populações nativas extraíam delas a seiva com que faziam xaropes nutrientes. Isto leva-nos a pensar na sua laboriosidade, sempre atentas a salvaguarda a terra e o meio ambiente, fiéis a uma visão harmoniosa da criação, livro aberto que ensina o homem a amar o Criador e a viver em simbiose com os outros seres vivos. Há muito que aprender disto, a começar pela capacidade de colocar-se à escuta de Deus, das pessoas e da natureza. Temos necessidade disto sobretudo no frenesi vertiginoso do mundo de hoje, caraterizado por uma constante «rapidación», que torna difícil um desenvolvimento realmente humano, sustentável e integral (cf. Carta enc. Laudato si’, 18), acabando por gerar uma «sociedade do cansaço e da desilusão» que sente dificuldade em reencontrar o gosto da contemplação, o sabor genuíno das relações, a mística do conjunto. Quanta necessidade temos de nos ouvir uns aos outros e dialogar, para nos afastarmos do individualismo dominante, dos juízos precipitados, da crescente agressividade, da tentação de dividir o mundo em bons e maus! As grandes folhas de acerácea, que absorvem ar poluído e restituem oxigénio, convidam a maravilhar-nos com a beleza da criação e deixar-nos atrair pelos saudáveis valores presentes nas culturas indígenas: estes servem de inspiração para todos nós e podem contribuir para sanar o hábito nocivo de explorar. Explorar a criação, as relações, o tempo, e regular a atividade humana apenas com base na utilidade e no lucro.
Todavia estes ensinamentos vitais foram violentamente combatidos no passado. Penso sobretudo nas políticas de assimilação e alforria, incluindo também o sistema escolar residencial, que prejudicou muitas famílias indígenas, minando a sua língua, cultura e visão de mundo. Naquele deplorável sistema promovido pelas autoridades governamentais da época, que separou tantas crianças das suas famílias, estiveram envolvidas várias instituições católicas locais; exprimo vergonha e pesar por isso e, juntamente com os Bispos deste país, renovo o meu pedido de perdão pelo mal cometido por tantos cristãos contra as populações indígenas. Por tudo isto peço perdão. É trágico quando crentes, como sucedeu naquele período histórico, se adequam mais às conveniências do mundo do que ao Evangelho. Se a fé cristã desempenhou um papel essencial na modelação dos ideais mais elevados do Canadá, que se caraterizam pelo desejo de construir um país melhor para todo o seu povo, é necessário — admitindo as próprias culpas — empenhar-se juntos na realização daquilo que sei que todos vós compartilhais: promover os direitos legítimos das populações nativas e favorecer processos de cura e reconciliação entre elas e os não indígenas do país. Isto reflete-se no vosso empenho por responder adequadamente aos apelos da Comissão em prol da Verdade e da Reconciliação, bem como na solicitude em reconhecer os direitos dos povos indígenas.
A Santa Sé e as comunidades católicas locais nutrem o desejo concreto de promover as culturas indígenas, com caminhos espirituais específicos e adequados, que incluam também a atenção às tradições culturais, costumes, línguas e processos educativos próprios, no espírito da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. É nosso desejo renovar a relação entre a Igreja e as populações indígenas do Canadá, uma relação marcada quer por um amor que deu excelentes frutos, quer — infelizmente — por feridas que nos estamos esforçando por compreender e sanar. Estou muito grato por ter encontrado e ouvido vários representantes das populações indígenas nos meses passados em Roma, e poder reforçar aqui, no Canadá, as boas relações estabelecidas com eles. Os momentos que vivemos juntos deixaram marcas em mim, nomeadamente o firme desejo de dar seguimento à indignação e à vergonha pelos sofrimentos suportados pelos indígenas, levando por diante um caminho fraterno e paciente com todos os canadianos segundo a verdade e a justiça, trabalhando pela cura e a reconciliação, sempre animados pela esperança.
Aquela «história de sofrimento e desprezo», originada por uma mentalidade colonizadora, «não se cura facilmente». Ao mesmo tempo alerta-nos para o facto de que «a colonização não para; embora em muitos lugares se transforme, disfarce e dissimule» (Exort. ap. Querida Amazonia, 16). É o caso das colonizações ideológicas. Se outrora a mentalidade colonialista transcurou a vida concreta das pessoas, impondo modelos culturais pré-estabelecidos, também hoje não faltam colonizações ideológicas que afrontam a realidade da existência, sufocam o apego natural aos valores dos povos, tentando desenraizar as suas tradições, a história e os laços religiosos. Trata-se de uma mentalidade que, com a presunção de ter superado «as páginas negras da história», abre espaço à cultura do cancelamento que avalia o passado com base apenas em certas categorias atuais. Assim estabelece-se uma moda cultural que uniformiza, torna tudo igual, não tolera diferenças e concentra-se apenas no momento presente, nas necessidades e direitos dos indivíduos, negligenciando muitas vezes os deveres para com os mais débeis e frágeis: pobres, migrantes, idosos, doentes, nascituros… São eles os esquecidos nas sociedades do bem-estar; são eles que, na indiferença geral, acabam descartados como folhas secas para queimar.
A ramagem frondosa e multicolorida das aceráceas lembra-nos, ao contrário, a importância do conjunto, de construir comunidades humanas não uniformizadas, mas realmente abertas e inclusivas. E como cada folha é fundamental para enriquecer a ramagem, assim também cada família, célula essencial da sociedade, há de ser valorizada, porque «o futuro da humanidade passa pela família» ( São João Paulo ii , Exort. ap. Familiaris consortio, 86). É a primeira realidade social concreta, mas está ameaçada por muitos fatores: violência doméstica, frenesi do trabalho, mentalidade individualista, carreirismo desenfreado, desemprego, solidão dos jovens, abandono dos idosos e dos enfermos... As populações indígenas têm tanto para nos ensinar sobre a guarda e a tutela da família, onde se aprende, já desde criança, a reconhecer o que está certo e o que é errado, dizer a verdade, partilhar, corrigir os erros, recomeçar, animar-se, reconciliar-se. Que o mal sofrido pelos povos indígenas, do qual agora nos envergonhamos, nos sirva hoje de alerta, para que o cuidado e os direitos da família não sejam postos de lado em nome de eventuais exigências produtivas e interesses individuais.
Voltemos à folha de acerácea. Nos tempos de guerra, os soldados usavam-nas como ligaduras e medicamentos para as feridas. Hoje, face à loucura insensata da guerra, precisamos novamente de lenir os extremismos da contraposição e curar as feridas do ódio. Uma testemunha de trágicas violências do passado disse, recentemente, que «a paz tem um seu segredo: nunca odiar ninguém. Se se quer viver, não se deve jamais odiar» («Entrevista a E. Bruck»: Avvenire, 8 de março de 2022). Não precisamos de dividir o mundo em amigos e inimigos, manter as distâncias e voltar a armar-nos até aos dentes: não serão as corridas aos armamentos e as estratégias de dissuasão que trarão paz e segurança. Não há necessidade de perguntar-se como continuar as guerras, mas como pará-las. Há necessidade de impedir que os povos voltem a ser reféns da trituração de espaventosas guerras frias que ainda se alargam. Há necessidade de políticas criativas e clarividentes, que saibam sair dos esquemas de parte para dar resposta aos desafios globais.
De facto, os grandes desafios de hoje, como a paz, as alterações climáticas, os efeitos da pandemia e as migrações internacionais têm em comum uma constante: são globais, são desafios globais, afetam a todos. E se todos eles falam da necessidade do conjunto, a política não pode ficar prisioneira dos interesses de parte. É preciso saber olhar — como ensina a sabedoria indígena — para as sete gerações futuras, e não para as conveniências imediatas, os prazos eleitorais, o apoio dos lóbis. É preciso também valorizar os desejos de fraternidade, justiça e paz das jovens gerações. De facto, tal como é necessário, para recuperar memória e sabedoria, escutar os idosos, assim também, para haver ímpeto e futuro, é preciso abraçar os sonhos dos jovens. Estes merecem um futuro melhor do que aquele que estamos a preparar-lhes, merecem ser envolvidos nas opções para a construção do hoje e do amanhã, particularmente para a salvaguarda da casa comum, para a qual são preciosos os valores e ensinamentos das populações indígenas. A propósito quero manifestar apreço pelo louvável empenho local a favor do meio ambiente. Poder-se-ia quase dizer que os emblemas tirados da natureza, como o lírio na bandeira desta província do Québec e a folha de acerácea na do país, confirmam a vocação ecológica do Canadá.
Quando a Comissão instituída para o efeito se encontrou a avaliar os milhares de esboços recebidos para a realização da bandeira nacional, muitos dos quais enviados por pessoas comuns, ficou surpreendida por conterem quase todos precisamente a folha de acerácea. A participação em torno deste símbolo compartilhado sugere-me sublinhar uma palavra fundamental para os canadianos: multiculturalismo. Este está na base da coesão de uma sociedade tão complexa como variadamente colorida são as ramagens frondosas das aceráceas. A própria folha da acerácea, com a sua multiplicidade de pontas e de lados, faz pensar numa figura poliédrica e diz que vós sois um povo capaz de incluir, de modo que aqueles que chegam podem encontrar lugar nesta unidade multiforme e oferecer-lhe a sua contribuição original (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 236). O multiculturalismo é um desafio permanente: é acolher e abraçar os diferentes componentes presentes, respeitando ao mesmo tempo a diversidade das suas tradições e culturas, sem pensar que o processo esteja concluído de uma vez por todas. Nesta linha, manifesto apreço pela generosidade em hospedar numerosos migrantes ucranianos e afegãos. É preciso trabalhar também para superar a retórica do medo a respeito dos imigrantes e dar-lhes, segundo a capacidade do país, a possibilidade concreta de se envolverem responsavelmente na sociedade. Para se conseguir isto, são indispensáveis os direitos e a democracia. Mas é preciso fazer frente à mentalidade individualista, lembrando que a convivência funda-se em pressupostos que o sistema político, sozinho, não pode gerar. Nisto é de grande ajuda a cultura indígena, ao recordar a importância dos valores da sociabilidade. E também a Igreja Católica, com a sua dimensão universal e a sua solicitude pelos mais frágeis, com o legítimo serviço em favor da vida humana em cada uma das suas fases, desde a conceção até à morte natural, é feliz por oferecer a própria contribuição.
Nestes dias, ouvi falar de numerosas pessoas necessitadas que batem à porta das paróquias. Mesmo num país tão desenvolvido e avançado como o Canadá, que presta muita atenção à assistência social, não são poucos os sem-abrigo que dependem das igrejas e dos bancos alimentares para receber ajudas e agasalhos essenciais, que — nunca o esqueçamos — não são apenas materiais. Estes irmãos e irmãs levam-nos a considerar a urgência de trabalharmos para pôr remédio à radical injustiça que polui o nosso mundo, pelo que a abundância dos dons da criação está repartida de forma muito desigual. É escandaloso que o bem-estar gerado pelo progresso económico não beneficie todos os setores da sociedade. E é triste ver que se registam, precisamente entre os nativos, muitos dos índices de pobreza, a que se vêm juntar outros indicadores negativos, como a baixa frequência escolar, o acesso não fácil à casa e à assistência sanitária. Que o emblema da folha de acerácea, que costuma aparecer nos rótulos dos produtos do país, seja um estímulo para todos realizarem escolhas económicas e sociais tendentes à partilha e ao cuidado dos necessitados.
Trabalhando juntos, de comum acordo, é que se enfrentam os prementes desafios de hoje. Agradeço-vos a hospitalidade, a solicitude e a estima, dizendo-vos com sincero afeto que tenho verdadeiramente no coração o Canadá e o seu povo.