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Por que vai o Papa ao Canadá?

 Por que vai o Papa ao Canadá?  POR-029
19 julho 2022

Por que vai o Papa ao Canadá? O jesuíta Federico Lombardi responde a esta pergunta de forma detalhada e bem documentada com um artigo em «La Civiltà Cattolica» (n. 4129 de 2/16 de julho), em cujo subtítulo já sobressai a resposta, nomeadamente, a questão básica relativa às relações da Igreja com os povos indígenas e as «escolas residenciais» canadenses.

A visita do Pontífice, programada de 24 a 30 de julho, é na realidade fruto da que fez, de 28 de março a 1 de abril passados, uma delegação de representantes dessas populações, acompanhada por bispos do Canadá. Referindo-se ao debate sobre a «descoberta» e o nascimento da nação, o autor fala de três realidades distintas: as First Nations («Primeiras Nações»), que abrangem os grupos presentes no território antes da chegada dos europeus, franceses e ingleses, as “nações” sucessivas, em relação às quais reivindicam igual dignidade. Trata-se de um milhão de pessoas, com cerca de 50 línguas diferentes. A segunda realidade é a dos quase seiscentos mil Métis («mestiços»), nascidos do encontro entre indígenas e europeus, e reconhecidos com uma sua identidade específica. A última é a dos 65.000 Inuítes, habitantes das terras árticas, outrora chamados «esquimós».

No total, os três grupos constituem pouco mais de 4% de toda a população do Canadá, mas o número continua a aumentar, tendo crescido de 39% entre 2006 e 2016. Agora, cada um destes componentes tem as suas assembleias ou órgãos representativos que afirmam fortemente a sua identidade cultural. Também a delegação que veio a Roma era composta por três grupos (com os próprios trajes e sinais distintivos), cada um dos quais teve um encontro pessoal com o Papa antes da audiência conjunta conclusiva.

As premissas dos problemas que se tornaram cada vez mais evidentes nas últimas décadas, explicou Lombardi, remontam ao tempo das «descobertas» do continente americano e da sua colonização pelas potências europeias daquela época. Contudo, acrescentou, a posição da Igreja católica é há muito tempo crítica em relação a todas as formas de colonialismo. No seu magistério encontramos testemunhos sobre a dignidade dos povos indígenas, a começar por Paulo iii na bula Sublimis Deus de 1537. Uma posição que foi sempre reiterada até ao Papa Francisco. No entanto, salientou Lombardi, não se pode negar que, antes dela, já tinham sido feitas declarações (a referência é a algumas bulas papais do final do século xv e ao termo terra nullius, «terra de ninguém») utilizadas para a apropriação por parte das potências «católicas», à luz da interligação entre os interesses da evangelização e da colonização, chegando a ponto de falar de uma «doutrina da descoberta» (Discovery Doctrine) como conceito de direito internacional, que no século xix foi aplicado nos processos entre os novos Estados da Federação americana e os povos indígenas. É por isso que, sublinhou o autor, estes últimos exigem insistentemente a rejeição desta doutrina e várias denominações cristãs não católicas se pronunciaram a tal respeito. Portanto, assim espera o jesuíta, continua a ser necessário reafirmar a distância histórica, espiritual e conceitual percorrida pela Igreja católica para uma afirmação cada vez mais decisiva da dignidade e dos direitos dos povos indígenas e da irreconciliabilidade entre evangelização e colonialismo.

Enriquecendo o texto com notas que remetem para a documentação principal sobre este assunto, Lombardi recordou em tempos mais recentes as palavras e os gestos de São João Paulo ii , por ocasião de algumas viagens ao continente americano, começando pelos seus encontros com os povos indígenas em 1984 e em 20 de setembro de 1987.

O nascimento do Estado

O Canadá nasceu em 1867 como Dominion federal do Império britânico. Em 1876, foi promulgado o Indian Act, documento de referência do governo para a gestão dos «Assuntos indígenas» no contexto do novo país. Uma política caraterizada pela convicção da inferioridade das etnias e das culturas indígenas, bem como da sua inevitável extinção e, portanto, da pressão para a assimilação na sociedade de matriz europeia.

As manadas de búfalos foram exterminadas no século xix e os povos caçadores «das pradarias» deviam transformar-se em agricultores. Aos indígenas foram atribuídos os territórios das «reservas», onde deviam permanecer confinados. Outra coluna desta política foi o sistema de «escolas residenciais», onde crianças e jovens eram educados em regime de separação das famílias e comunidades, com métodos de disciplina rigorosa, imposição da língua inglesa, aprendizagem de atividades e profissões adequadas à assimilação e de práticas religiosas cristãs.

Eis, pois, a análise aprofundada do artigo sobre o “sistema das escolas residenciais” que, desejadas e financiadas pelo governo, contudo estavam confiadas para a gestão a organismos das Igrejas cristãs que tradicionalmente se ocupavam de atividades educacionais. Assim, por mais de um século existiram 139 estruturas deste tipo (distribuídas por todo o país, mas principalmente nos territórios ocidentais e sobretudo nos Estados anglófonos), que assistiram, calcula-se, um total de 150.000 menores, tanto meninos como meninas: a primeira foi aberta em 1831 (quando o Estado do Canadá ainda não tinha nascido), e a última foi fechada em 1996. Em 1920 havia cerca de 80. Em 1931, três vezes mais do que cinquenta anos antes. Pouco mais de metade eram atribuíveis à Igreja católica.

Desde as primeiras décadas do século xx não faltaram testemunhos críticos fiáveis sobre as condições de vida, especialmente no respeitante a graves carências sanitárias, má nutrição e rigidez dos métodos. A mortalidade era elevada, a tuberculose e outras doenças ceifaram muitas vítimas. Isto correspondia à escassez dos recursos que eram usados. O Departamento governamental para os «Assuntos indígenas», do qual dependiam, culpava o governo pela situação e pressionava para que as escolas se tornassem autossuficientes, graças ao trabalho dos seus hóspedes, que deviam ser preparados para várias profissões (agricultura, artesanato, corte e costura, economia doméstica para meninas, etc.). E para reduzir as despesas, os corpos dos alunos mortos não eram devolvidos às comunidades de origem mas enterrados ali mesmo.

Somente com o crescimento da autoconsciência dos povos indígenas a situação mudou gradualmente. O sistema começou a ser acusado por testemunhos isolados, muitas vezes dramáticos, de ex-alunos e dos seus familiares sobre os vários tipos de sofrimento e abuso que tinham padecido (morais, mas também físicos e sexuais). Além disso, as condições dos povos indígenas — com os problemas de privação e marginalização social (alcoolismo, pobreza, situação sanitária, nível cultural, criminalidade, etc.) — eram, e ainda são, muito mais sérias do que no resto da população.

Houve confrontos até violentos, acrescentou Lombardi, e tornou-se necessário abordar tais questões a nível nacional. Em 1991 foi instituída uma «Comissão real sobre os povos indígenas», que publicou o seu relatório em 1996. Mais tarde foram apresentadas «ações coletivas» por grupos indígenas contra o Estado e instituições das Igrejas cristãs. Assim, em 2005 chegou-se ao «Acordo sobre as escolas residenciais indígenas», que previa medidas de compensação exigentes e, em 2008, à instituição da «Comissão canadense para a verdade e a reconciliação». Ela completou o seu relatório em 2015, formulando 94 recomendações e pedidos sobre uma vasta gama de problemas relativos a todos os aspetos principais da condição dos povos indígenas. Os trabalhos para a sua atuação continuam através do «Centro nacional para a verdade e a reconciliação» instituído na Universidade de Manitoba.

Um dos temas mais dolorosos é a pesquisa sobre os menores que morreram nas escolas residenciais e cujas sepulturas não foram documentadas nem identificadas. Também porque muitos destes locais foram abandonados após o encerramento ou a destruição da escola. Até agora foram rastreadas as sepulturas de mais de 3.000 menores.

O envolvimento da Igreja

A parte conclusiva do artigo é dedicada ao envolvimento da Igreja e ao pedido de uma viagem do Papa.

De resto, as Igrejas cristãs, e especialmente a Igreja católica, tornaram-se alvo frequente de críticas muito duras. Por isso, já no início dos anos 90 foram feitas importantes declarações sobre esta questão, com o reconhecimento explícito de erros e falhas, e o compromisso de solidariedade para com os povos indígenas na sua busca de dignidade e justiça: como a declaração final do Encontro nacional, que teve lugar em Saskatoon em março de 1991, e o documento de 24 de julho do mesmo ano, An Apology to the First Nations of Canada by the Oblate Conference of Canada. Os oblatos de Maria Imaculada, a congregação religiosa mais envolvida, apresentaram aos indígenas um pedido de perdão, cuja afirmação mais forte foi a seguinte: «Pedimos perdão pela própria existência das escolas, reconhecendo que o maior abuso não foi o que aconteceu nas escolas, mas que elas mesmas tenham existido».

Em 1993, a Comissão Justiça e Paz da Conferência episcopal dirigiu à Comissão real uma longa carta intitulada Let Justice Flow Like a Mighty River.

Hoje, o processo de debate, reflexão e diálogo continua, intensificando-se na medida em que se desenvolvem as questões jurídicas. A este respeito, no supracitado «Acordo sobre as escolas residenciais indígenas», de 2005, as partes católicas assumem três compromissos onerosos: o pagamento de 29 milhões de dólares canadenses; a realização de iniciativas e serviços concretos «de cura e reconciliação», no valor de 25 milhões de dólares; e uma campanha de fundraising para angariar outros 25 milhões de dólares.

Em 2015, o governo canadense reconheceu que os dois primeiros compromissos foram cumpridos, e que os esforços feitos para o terceiro eram adequados. Mas a seguir a Conferência episcopal garantiu uma contribuição de 30 milhões de dólares e quer corresponder ao que a Comissão para a verdade e a reconciliação exigiu no relatório de 2015. Alguns pedidos dizem respeito à formação do clero, religiosos e leigos com referência à cultura e à espiritualidade indígenas; a colaboração para encontrar e honrar a memória dos menores enterrados sem identificação; e o financiamento de projetos para a cultura, as línguas e a educação dos indígenas. Contudo, a primeira solicitação da Comissão chama diretamente em questão o Papa, a fim de que «apresente um pedido de perdão às vítimas (an Apology to Survivors) e às suas famílias e comunidades pelo papel da Igreja católica romana no abuso espiritual, cultural, emocional, físico e sexual contra menores das Primeiras Nações, dos Inuítes e dos Métis nas escolas residenciais».

Por sua vez, em 24 de setembro os bispos do Canadá publicaram um forte pedido de perdão, concluindo que estavam comprometidos a trabalhar com a Santa Sé e os parceiros indígenas em vista de uma visita pastoral do Papa ao Canadá.