· Cidade do Vaticano ·

Numa entrevista à agência de notícias Reuters

O Papa reiterou a sua vontade de ir a Moscovo e Kyiv

Pope Francis speaks during an exclusive interview with Reuters Senior Correspondent Philip Pullella ...
12 julho 2022

O Papa Francisco negou ter qualquer intenção de se demitir («Nunca me passou pela cabeça. Neste momento, não»), negou os rumores de que está doente de cancro. E reiterou o seu desejo de viajar à Rússia e à Ucrânia o mais cedo possível, talvez em setembro. Disse também que respeita a decisão do Supremo Tribunal dos eua sobre a interrupção da gravidez e reitera a sua forte condenação do aborto. O bispo de Roma concedeu uma longa entrevista ao correspondente da agência Reuters, Phil Pullella, a 2 de julho. O encontro durou cerca de 90 minutos e este é um resumo com alguns dos conteúdos publicados pela agência.

Como se sabe, de acordo com vários artigos e comentários nos meios de comunicação, alguns acontecimentos recentes ou programados (desde o consistório no final de agosto até à visita a L’Aquila onde está sepultado Celestino v , que renunciou em 1294) fariam pensar na intenção do Papa de renunciar ao pontificado. Mas Francisco negou esta interpretação: «Todas estas coincidências levaram algumas pessoas a pensar que a mesma “liturgia” teria acontecido. Mas isto nunca me passou pela cabeça. Não no momento, não neste momento. Realmente!». Ao mesmo tempo, como tinha feito várias vezes no passado, o Papa explicou que a possibilidade de renúncia é tomada em consideração, especialmente depois da escolha feita por Bento xvi em 2013, caso a saúde tornasse impossível continuar no seu ministério. «Quando me aperceber que não consigo, fá-lo-ei». Francisco falou do gesto de Bento, sublinhando que «foi uma coisa boa para a Igreja e para os Papas» e que ele continua a ser um «grande exemplo». Mas à pergunta sobre quando poderia acontecer, ele respondeu: «Não o sabemos. Deus di-lo-á», com palavras semelhantes às utilizadas no dia 1 de julho, numa entrevista à agência Télam.

Sobre o tema dos problemas no joelho, Francisco falou do adiamento da viagem a África e da necessidade de terapia e descanso. Disse que a decisão de adiar lhe causou «muito sofrimento», especialmente porque queria promover a paz tanto na República Democrática do Congo como no Sudão do Sul. «O médico — acrescentou o Papa — disse para não a realizar porque não estava bem. Irei ao Canadá porque o médico me disse que com mais 20 dias posso recuperar». O Papa, observou o entrevistador, utilizou uma bengala para entrar na sala de receção no rés do chão da Casa Santa Marta. E depois ofereceu pormenores sobre o estado do seu joelho, dizendo que sofreu «uma pequena fratura» ao dar um passo falso quando um ligamento estava inflamado. «Estou bem, melhorando lentamente», acrescentou, explicando que a fratura começa a sarar, ajudada por laser e terapia magnética. «Agora — acrescentou o Papa — tenho de começar a movimentar-me para não perder a musculatura. Está melhor, está melhor».

Depois, Francisco negou os rumores de que lhe tinha sido diagnosticado cancro há um ano, quando foi submetido a uma operação de seis horas para remover um pedaço do cólon devido a uma diverticulite, uma condição comum nos idosos. «A operação foi um grande sucesso», disse o Papa, acrescentando com um sorriso no rosto que «não me disseram nada» sobre o alegado cancro, que liquidou como «mexerico de corte». Declarou à Reuters que não quer ser operado do joelho porque a anestesia geral da cirurgia do ano passado teve efeitos colaterais negativos.

Em seguida a entrevista abordou questões internacionais. Falando da situação na Ucrânia, Francisco observou que houve contactos entre o secretário de Estado Pietro Parolin e o ministro dos Negócios Estrangeiros russo Sergei Lavrov sobre uma possível viagem a Moscovo. Os sinais iniciais não eram bons. Falou-se desta possível viagem pela primeira vez há vários meses, disse o Papa, explicando que Moscovo respondeu que este não era o momento certo. No entanto, deixou entender que agora algo poderia ter mudado. «Gostaria de ir à Ucrânia, e queria ir primeiro a Moscovo. Trocámos mensagens sobre isto, porque pensei que se o presidente russo me concedesse uma pequena janela para servir a causa da paz... E agora é possível, depois do meu regresso do Canadá, que eu consiga ir à Ucrânia. A primeira coisa a fazer é ir à Rússia para tentar ajudar de algum modo, mas gostaria de ir a ambas as capitais». Referindo-se a Moscovo, Francisco falou de «diálogo muito aberto, muito cordial», «a porta está aberta».

Depois, abordou o tema da decisão do Supremo Tribunal dos eua que anulou a histórica sentença Roe contra Wade que estabelecia o direito da mulher a abortar, Francisco disse que respeitava a decisão mas não tinha informação suficiente para falar sobre ela sob um ponto de vista legal. Mas também condenou veementemente o aborto, comparando-o — como já tinha feito muitas vezes antes — à «contratação de um assassino». «É uma vida humana, isto é ciência». «Pergunto: é legítimo, é correto, eliminar uma vida humana para resolver um problema?».

Ao Papa foi também pedido que comentasse o debate em curso nos Estados Unidos sobre a possibilidade de um político católico, pessoalmente contrário ao aborto mas que apoia o direito de escolha dos outros, poder receber a comunhão. A speaker da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, por exemplo, foi proibida de receber a Eucaristia pelo arcebispo da sua diocese, São Francisco, mas recebe regularmente a comunhão numa paróquia em Washington, e na semana passada recebeu a comunhão de um sacerdote durante a missa em São Pedro presidida pelo Pontífice.

«Quando a Igreja perde a sua natureza pastoral, quando um bispo perde a sua natureza pastoral, isto causa um problema político», comentou o Papa. «Isto é tudo o que posso dizer».

O Papa afirmou que o Acordo Provisório da Santa Sé com a República Popular da China «vai bem» e espera que possa ser renovado em outubro próximo.

Como se recorda, graças ao Acordo Provisório assinado em 2018, cujo texto é atualmente confidencial, a situação da Igreja católica na China foi saneada ao trazer de volta à plena comunhão com Roma os bispos nomeados sem mandato papal. O Acordo, que prevê um percurso partilhado para chegar à nomeação dos novos bispos, deixa ao Pontífice a palavra final.

Como mostra a transcrição da entrevista, o Papa Francisco defendeu o acordo e, antes de mais, expressou o seu apreço pelo papel desempenhado pelo cardeal secretário de Estado: «Quem leva a cabo este acordo é o cardeal Parolin, que é o melhor diplomata da Santa Sé, um homem de alto nível diplomático. E ele sabe mover-se, é um homem de diálogo, e dialoga com as autoridades chinesas. Acho que a comissão a que ele preside fez tudo para avançar e procurar uma saída e encontraram-na».

Francisco defendeu a política dos pequenos passos, aquele «martírio da paciência» de que falava o cardeal Agostino Casaroli, artífice da Ostpolitik vaticana em relação aos países da Europa do Leste então do bloco soviético. «Muitos disseram tantas coisas contra João xxiii , contra Paulo vi , contra Casaroli — explicou o Papa — mas a diplomacia é assim. Perante uma situação fechada é preciso procurar o possível, não o ideal, a diplomacia é a arte do possível e fazer com que o possível se torne real. A Santa Sé sempre teve estes grandes homens. Mas isto com a China é levado a cabo por Parolin, que é ótimo a este respeito».

Comparando a situação atual com a anterior, em 1989, Francisco disse que a nomeação de bispos na China desde 2018 decorre lentamente, mas há resultados. «Avança lentamente, mas (alguns bispos, n.d.r.) foram nomeados. Vai devagar, como digo, “à maneira chinesa”, porque os chineses têm aquela sensação de tempo que ninguém os apressa». «Também eles têm problemas» — acrescentou, referindo-se às diferentes atitudes das autoridades locais na China, «porque não é a mesma situação em todas as regiões do país. Porque também (o modo de manter relações com a Igreja católica, n.d.r.) depende dos governantes, são diferentes. Mas o acordo é bom e espero que possa ser renovado em outubro».

Depois o Papa Francisco revelou que está prestes a nomear duas mulheres no Dicastério para os bispos, que, por conseguinte serão envolvidas no processo de eleição de novos pastores diocesanos. O Pontífice respondeu a uma pergunta sobre a presença feminina no Vaticano, sobre quanto foi estabelecido pela nova constituição apostólica Praedicate Evangelium que reforma a Cúria e sobre quais dicastérios poderiam ser confiados a um leigo ou a uma leiga no futuro.

«Estou aberto que se dê a ocasião. Agora o Governatorato tem uma vice-governadora... Agora, na Congregação para os bispos, na comissão para eleger os bispos, entrarão duas mulheres pela primeira vez. Abre-se um pouco deste modo». Francisco acrescentou que para o futuro vê a possibilidade de nomear leigos na direção de dicastérios como «o dos leigos, da família e da vida, da cultura e da educação, ou para a Biblioteca, que é quase um dicastério».

Assim, o Papa Francisco recordou que no ano passado, pela primeira vez, nomeou uma mulher para o cargo número dois do Governatorato da Cidade do Vaticano, irmã Raffaella Petrini. Além disso, Francisco nomeou a irmã Nathalie Becquart, religiosa francesa das Missionárias Xaviere, como subsecretária do Sínodo dos bispos, e a irmã Alessandra Smerilli, das Filhas de Maria Auxiliadora, como número dois no Dicastério para o serviço do desenvolvimento humano integral. Entre as leigas que já ocupam altos cargos no Vaticano encontram-se Francesca Di Giovanni, subsecretária para o Sector multilateral da Secção para as Relações com os Estados da Secretaria de Estado, Barbara Jatta, a primeira diretora dos Museus do Vaticano, Nataša Govekar, diretora da Direção teológico-pastoral do Dicastério para a Comunicação, e Cristiane Murray, vice-diretora da Sala de Imprensa da Santa Sé. Ambas foram nomeadas pelo atual Pontífice.

No mês passado, o cardeal Kevin Joseph Farrell, prefeito do Dicastério para os leigos, a família e a vida, brincou sobre o facto de que, com a promulgação da nova constituição sobre a Cúria, ele poderia ser o último eclesiástico a guiar aquele dicastério.

A luta contra os abusos na Igreja começou lentamente, mas hoje é irreversível. «A Igreja começou a tolerância zero lentamente, e foi em frente. Sobre isto, acredito que a direção tomada é irreversível. É irreversível. Hoje é um problema que não se discute».

Respondendo a uma pergunta sobre as resistências que nalguns casos se encontram a nível local na aplicação de medidas contra os abusos, o Papa observou: «Há resistência, mas há cada vez mais consciência de que este é o caminho». Francisco recordou a divisão do Dicastério para a doutrina da fé em duas secções, dedicando uma aos processos sobre abusos e comentou: «As coisas estão a correr bem».

Depois Francisco citou um recente encontro com visitantes que lhe recordaram que no seu país cerca de 46% dos abusos ocorrem no âmbito familiar e observou que «isto é terrível». Depois de recordar o que as estatísticas mostram, o Papa acrescentou: «Mas isto nada justifica. Mesmo que houvesse apenas um caso, seria vergonhoso. E devemos lutar contra um só caso. Isto não está bem, porque (o abuso) é matar a pessoa que tenho de salvar. Eu, como sacerdote, devo ajudar a crescer e salvar estas pessoas. Se eu abusar, mato-os. Isto é terrível».

«Tolerância zero», concluiu Francisco, elogiando o trabalho do cardeal arcebispo de Boston e da Pontifícia comissão para a tutela dos menores, da qual é presidente: «E aqui, chapeau ao cardeal O’Malley, que é corajoso, este homem. Ele tem a coragem de um capuchinho, realmente, um grande homem. E também a comissão para a tutela dos menores, que está a funcionar bem, agora com o padre Small, que é outro corajoso, trabalha bem. Eu apoio totalmente isto».

Respondendo a outra pergunta formulada por Phil Pullella, o Papa Francisco disse que considera que as reformas financeiras evitarão escândalos no futuro, como os que têm chegado às manchetes nos últimos anos e como aquele da compra e venda do palácio de Londres na Sloane Avenue, agora em averiguação no processo realizado pelo Tribunal do Vaticano.

Falando do palácio de Londres, o jornalista perguntou: «Acha que houve mudanças suficientes para evitar que escândalos semelhantes voltem a acontecer?». «Acho que sim», respondeu o Pontífice, enumerando imediatamente todos os passos que foram dados: «A criação da Secretaria para a economia com pessoas técnicas, que compreendem, que não caem nas mãos de “benfeitores”, ou amigos que te podem fazer escorregar, creio que este novo dicastério, digamos, que tem todas as finanças nas mãos, é uma segurança na administração. Porque antes, a administração era muito desorganizada».

O Papa deu então o exemplo de um chefe de secção na Secretaria de Estado que tinha de administrar as finanças, mas não sendo qualificado procurava, em boa fé, amigos para lhe dar uma ajuda. «Mas por vezes os amigos não eram a beata Imelda e assim acontecia o que aconteceu», comentou Francisco, citando Imelda, uma jovem do século xv que é um exemplo de pureza.

«(A culpa era) — disse o Papa — a irresponsabilidade da estrutura, naquele momento, que deu a responsabilidade a uma boa pessoa que estava lá porque ocupava aquele lugar. E este não sabia (sobre coisas financeiras) e devia pedir ajuda fora sem controlos suficientes de dentro. A administração não era madura».

Francisco concluiu recordando que «esta ideia para a Secretaria para a Economia veio do cardeal Pell. Foi ele o génio».