Reflexões litúrgico-pastorais
Perseverança no anúncio
As páginas do evangelho que temos vindo a acompanhar centram-se no discipulado de Jesus, temática muito cara a São Lucas. A radicalidade evangélica que é exigida ao discípulo encontra neste evangelista a sua máxima expressão. Porém, a condição discipular tem em vista outra via: a da missão. A passagem do discipulado ao apostolado é a continuidade óbvia do caminho cristão.
No episódio de hoje, Jesus esboça um primeiro teste missionário aos seus discípulos: envia-os dois a dois “à sua frente” a todos os locais aonde Jesus haveria de ir. Estas pequenas referências dizem, porém, muita coisa: em primeiro lugar, que não caminhamos sozinhos, mas que a missão se faz em conjunto e de forma sinodal, e não de forma individual; em segundo lugar, que a tarefa primordial do discípulo-missionário é preparar o caminho de Jesus, ou seja, ser “precursor” de Alguém que nos supera e ultrapassa, sem ter a veleidade de querer substituir o Senhor naquilo que é a Sua missão; em terceiro lugar, é uma missão que abrange “todas as cidades e lugares”, sem exclusividades ou seletividades, mas com a consciência do cunho universal que a mensagem salvífica de Jesus carrega.
A missão de Jesus, que a Igreja perpetua, vive numa tensão permanente entre a necessidade e a disponibilidade. Ou seja, Jesus não esconde a grandeza da missão e a escassez de trabalhadores para a amplitude da “seara”, e por isso apela a que esta consciência seja assumida como uma responsabilidade comum: “Pedi”. Por outro lado, une a essa necessidade de trabalhadores o apelo à disponibilidade dos ouvintes: “Ide”. O movimento discipular deve conduzir, de forma natural, ao movimento apostolar: a um “vinde” há-de corresponder um “ide”.
Não escondendo as dificuldades por que hão-de passar os discípulos-missionários (de ontem e de hoje), aqui simbolizados metaforicamente na figura dos lobos, Jesus enuncia uma série de características que devem definir o perfil da missão cristã no mundo.
Em primeiro lugar, o anúncio cristão deve pautar-se pela centralidade daquilo que é essencial. Esta sobriedade da indumentária do discípulo (que não deve levar bolsa, alforge e sandálias) demonstra sobretudo o espírito de total confiança e abandono em Deus que reveste o cristão que se despoja de si e se deixa revestir de Cristo. Abdicar de levar estes utensílios significa não fazer depender de nós o sucesso da missão, significa libertarmo-nos das coisas que tantas vezes nos amarram e prendem demasiado à vida, dando-nos a ilusão de uma falsa segurança porque apoiados unicamente em nós próprios.
Em segundo lugar, o anúncio cristão caracteriza-se pela urgência. Como cantamos no hino das Jornadas Mundiais na Juventude, “há pressa no ar”. Não se trata aqui de “fazer as coisas à pressa”, sem qualquer tipo de discernimento ou critério, mas de definir a evangelização como uma prioridade (pessoal e comunitária). O Senhor convida-nos a não perdermos nem dos determos em aspetos demasiado triviais que nos desviem do caminho traçado, ou que nos distraiam na atenção ao essencial.
Em terceiro lugar, o anúncio cristão é algo que se propõe, mas que não se impõe. O testemunho pode sempre esbarrar na recusa ou na indiferença dos destinatários, mas não deve travar a audácia nem a perseverança do anúncio. Deus conhece melhor do que ninguém o coração de cada um e pode inspirar novas oportunidades e suscitar, de forma criativa, novos meios de Se fazer presente na vida de quem rejeita, numa primeira instância, a paz que Ele mesmo oferece.
Em quarto lugar, o anúncio cristão faz-se de forma desinteressada e gratuita. Nada nos deve mover, a não ser a consciência de saber que estamos a fazer a vontade de Deus. Nesse sentido, o missionário é aquele que não exige, mas que sempre agradece aquilo que por generosidade lhe é concedido. A missão cristã no mundo faz-se no meio da imprevisibilidade, mas é exatamente nessa constante experiência arrojada e arriscada do desconhecido que se obtém as maiores recompensas divinas.
Em quinto lugar, o anúncio cristão funda-se na certeza de que Deus nos acompanha em todo o processo. Ao referir o poder de curar os enfermos, Jesus manifesta, em forma de promessa, a Sua condescendência em permitir que os discípulos atuem em Seu nome e realizem aquilo que é apanágio do próprio Senhor. A presença de Jesus não se efetiva apenas em forma de palavra («Está perto de vós o reino de Deus»), mas também em forma de gestos concretos que sinalizam a sacramentalidade dos gestos da Igreja.
Mais uma vez, Jesus não garante o sucesso (humano) das tarefas a que nos chama. Apenas nos pede duas coisas: persistência e perseverança no anúncio do reino de Deus, e a apaziguadora consciência de que se fez tudo o que esteve ao nosso alcance. Se assim for, poderemos alegrar-nos, pois também os nossos nomes estão inscritos nos Céus.
*Docente de Sagrada Escritura
na Faculdade de Teologia da Universidade católica portuguesa
David Palatino *