Mediante a utilização e a gestão dos bens culturais, os institutos religiosos «podem dar um bom testemunho e anunciar a possibilidade de uma economia da cultura, da solidariedade e do acolhimento», escreveu o Papa Francisco na seguinte mensagem enviada aos participantes no Congresso «Carisma e criatividade. Catalogação, gestão e projetos inovadores para os bens culturais das comunidades de vida consagrada», que teve lugar nos dias 4-5 de maio na sede da Pontifícia Universidade Antonianum.
Estimados irmãos e irmãs!
No Pentateuco narra-se a história do povo de Israel que, no deserto, vai rumo à Terra prometida. Israel constitui-se como povo na experiência da proximidade de Deus, adquire as modalidades de culto agradável ao Senhor, aprende a lei divina, que é essencialmente o amor a Deus e ao próximo. Nesta narrativa, nota-se que se presta uma certa atenção não só às pessoas, mas também aos objetos sagrados, em particular à tenda do santuário e ao mobiliário do culto. Eles constituem os símbolos da presença do Senhor e são também sinais identitários dos israelitas em relação às nações com que entram em contacto. A sua importância é ressaltada pelo cuidado com que tais objetos devem ser tratados, a começar pelo inventário detalhado que os descreve, como se narra no seguinte trecho do livro dos Números:
«Eis o que eles deverão guardar e transportar para cumprir a tarefa que lhes foi confiada na tenda da reunião: as tábuas do Tabernáculo, as suas travessas, colunas e pedestais; as colunas que estão ao redor do átrio, os seus pedestais, estacas, cordas e todos os seus utensílios, com tudo o que se relaciona com esse serviço. Fareis um inventário nominativo do que eles deverão guardar e transportar. Tal é o serviço das famílias dos filhos de Merari...» (4, 31-33).
Este trecho, pouco conhecido, pode inspirar o vosso Congresso “Carisma e criatividade” sobre os bens culturais dos Institutos de vida consagrada, promovido pela Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, e pelo Pontifício Conselho para a Cultura, com a colaboração da Conferência Episcopal Italiana, da Pontifícia Universidade Gregoriana e da Universidade de Bolonha, e com a participação da União Internacional das Superioras-Gerais, da União dos Superiores-Gerais e do Secretariado para a Assistência às Monjas.
Desde o início do Pontificado, chamei a atenção para a gestão dos bens temporais da Igreja, na convicção de que «assim como o administrador fiel e prudente tem a função de cuidar atentamente daquilo que lhe foi confiado (cf. Lc 12, 42), também a Igreja sente a responsabilidade de tutelar e gerir atentamente os próprios bens, à luz da sua missão de evangelização e com particular solicitude pelos necessitados».1
Há já alguns anos que a Congregação para os consagrados se preocupa em orientar os vários institutos na gestão dos respetivos bens eclesiásticos ao serviço do humanum e da missão da Igreja. Seguiu-se uma série de congressos e documentos de envergadura doutrinal e de praticidade concreta, a fim de promover uma consciência mais madura acerca da gestão destes bens, que têm uma natureza eminentemente eclesial, uma vez que devem cumprir as finalidades que a Igreja lhes atribui.2 Consequentemente, no respeito pela justa autonomia de que gozam (cf. cân. 586), as comunidades de vida consagrada exercem a sua capacidade patrimonial (cf. cân. 634 § 1; cân. 1255) em nome da Igreja, tendo em vista o bem comum.
Este congresso, que nasce da colaboração entre dois Dicastérios da Cúria Romana, presta atenção ao valor eclesial, histórico, artístico e cultural que muitos destes bens possuem. Com efeito, os Institutos de vida consagrada e as Sociedades de vida apostólica foram e continuam a ser promotores de arte e cultura ao serviço da fé, depositários de uma parte muito relevante do acervo cultural da Igreja e da humanidade: arquivos, livros, obras artísticas e litúrgicas, os próprios imóveis. Por isso, é possível «elaborar quase um discurso “teológico” sobre os bens culturais, considerando que eles desempenham um papel na sagrada liturgia, na evangelização e no exercício da caridade».3
Hoje, pode-se acrescentar que o valor que eles adquirem consiste essencialmente na capacidade de transmitir um significado religioso, espiritual e cultural que, para os bens culturais dos Institutos de vida consagrada, consiste sobretudo no reconhecimento da relação que eles mantêm com a história, a espiritualidade e as tradições próprias das Comunidades específicas, na prática, com o seu “carisma”. Em particular, eles podem ser considerados bens testemunhais onde preservar este carisma, a fim de o proclamar de novo, repensá-lo e atualizá-lo. Daí deriva o título do vosso congresso: “Carisma e criatividade”, no qual se compreende que a exigência e, às vezes, a responsabilidade da preservação, pode tornar-se uma oportunidade para renovar, reconsiderar o próprio carisma, recompô-lo no atual contexto sociocultural e planificá-lo para o futuro.
A este propósito, reitero o que pude dizer no primeiro congresso supracitado, promovido pela Congregação: «A fidelidade ao carisma fundacional e ao consequente património espiritual, com as finalidades próprias de cada Instituto, continuam a ser o principal critério de avaliação da administração, da gestão e de todas as intervenções realizadas nos Institutos, a qualquer nível».4
Portanto, há necessidade de identificar, em primeiro lugar, elementos de compreensão específicos destes bens, a fim de definir as suas caraterísticas históricas, espirituais, teológicas, eclesiológicas e jurídicas.
Em seguida, é preciso promover a catalogação dos bens na sua totalidade e variedade (arquivísticos, livreiros, artísticos móveis e imóveis), como ato primário de conhecimento e, portanto, de estudo, de tutela jurídica, de conservação científica e de valorização pastoral. A catalogação é necessária por motivos de serviço à cultura, de transparência de gestão e de prudência, considerando os numerosos perigos naturais e humanos a que estão expostos estes frágeis tesouros. Hoje a tecnologia informática oferece instrumentos que permitem recolher uma infinidade de dados e de imagens e de os divulgar ou de os reservar de modo seletivo e extremamente rigoroso.
É igualmente importante abordar os temas relativos à gestão dos bens culturais, quer em termos de sustentabilidade financeira como da contribuição que podem oferecer para a evangelização e o aprofundamento da fé.
Concluindo, é preciso abordar o tema da reutilização do património imobiliários em desuso, exigência hoje ainda mais urgente, não só por causa da redução do número de comunidades de vida consagrada e da utilidade de encontrar os recursos necessários para cuidar das irmãs e irmãos idosos e doentes, mas também, em particular, dos efeitos da aceleração das mudanças legislativas e das imperiosas exigências de adaptação. O desuso é causado, não por último, pelas despesas económicas de manutenção e conservação ordinária e extraordinária, suportadas pelas mencionadas comunidades, especialmente na Europa. O problema não deve ser enfrentado com decisões improvisadas ou apressadas, mas no âmbito de uma visão global e de uma programação clarividente, e possivelmente através do recurso a comprovadas experiências profissionais. O desuso do património é um tema particularmente sensível e complexo, que pode atrair interesses falaciosos por parte de pessoas sem escrúpulos e ser ocasião de escândalo para os fiéis: por isso, é necessário agir com grande prudência e cautela, e também criar estruturas institucionais de acompanhamento a favor das comunidades menos preparadas.
Todos estes temas serão aprofundados durante os dois dias do vosso congresso, com a oportunidade de identificar não só os problemas, mas também algumas experiências bem-sucedidas e boas práticas compartilháveis.
É particularmente através da utilização dos bens imóveis que a Igreja e, portanto, todas as comunidades que a compõem, podem dar um bom testemunho e anunciar a possibilidade de uma economia da cultura, da solidariedade e do acolhimento.
Enquanto vos confio a Maria, Mãe do Senhor e da Igreja, a quem o mês de maio é dedicado, concedo-vos a minha Bênção, rezo por vós, e peço-vos também que rezeis por mim.
Roma, São João de Latrão
4 de maio de 2022.
Francisco
1 Carta Apostólica motu proprio Fidelis dispensator et prudens (24 de fevereiro de 2014), Prefácio.
2 Cf. cdc cân. 1254 § 2 e 1257 § 1.
3 Mensagem ao Congresso “Deus já não vive aqui?” (29 de novembro de 2018), 2.
4 Mensagem aos participantes no Simpósio internacional sobre o tema: “A gestão dos bens eclesiásticos dos Institutos de vida consagrada e das Sociedades de vida apostólica ao serviço do humanum e da missão da Igreja” (8 de março de 2014).