«Exorto-vos a ajudar as Conferências episcopais a criar centros especiais onde as pessoas que foram abusadas e os seus familiares possam encontrar acolhimento e escuta e ser acompanhadas num caminho de cura e justiça», disse o Papa Francisco aos membros da Pontifícia Comissão para a tutela dos menores, recebidos em audiência na manhã de 29 de abril. Eis o discurso do Pontífice.
Estimados irmãos e irmãs
bom dia! Bem-vindos!
Sinto-me feliz por vos dar as boas-vindas após a conclusão da vossa assembleia plenária. Agradeço ao Cardeal O’Malley as suas palavras de introdução; e agradeço a todos vós a vossa dedicação ao trabalho de proteção das crianças, tanto na vossa vida profissional como no serviço aos fiéis. Os menores e as pessoas vulneráveis estão hoje mais seguras na Igreja graças também do vosso empenho. Muito obrigado, deveras. E gostaria de agradecer ao “grande teimoso” desta causa que é o Cardeal O’Malley, que vai em frente contra tudo, mas que a levou adiante. Obrigado, obrigado!
É um serviço que lhe foi confiado e que precisa de ser desempenhado com cuidado. Precisa da atenção contínua da Comissão, para que a Igreja não seja apenas lugar seguro para os menores e lugar de cura, mas seja plenamente confiável para promover os seus direitos em todo o mundo. De facto, infelizmente não faltam situações em que a dignidade das crianças é ameaçada, e isto deveria ser uma preocupação para todos os fiéis e todas as pessoas de boa vontade.
Por vezes, a realidade do abuso e o seu impacto devastador e permanente na vida das crianças parece sobrecarregar os esforços daqueles que procuram responder com amor e compreensão. O caminho para a cura é longo, é difícil, requer uma esperança bem fundamentada, esperança naquele que foi para a cruz e para além da cruz. Jesus ressuscitado carregou, e carrega para sempre, as cicatrizes da sua crucificação no seu corpo glorificado. Estas chagas dizem-nos que Deus nos salva não “saltando” os nossos sofrimentos, mas através dos nossos sofrimentos, transformando-os com o poder do seu amor. O poder curativo do Espírito de Deus não nos engana; a promessa de nova vida de Deus não nos falta. Só precisamos de ter fé em Jesus ressuscitado e colocar nossa vida nas feridas do seu corpo ressuscitado.
O abuso, em todas as suas formas, é inaceitável. O abuso sexual de crianças é particularmente grave, pois ofende a vida enquanto está a florescer naquele momento. Em vez de florescer, a pessoa abusada é ferida, por vezes de forma indelével. Recebi recentemente uma carta de um pai, cujo filho foi abusado e, por isso, não conseguiu sair do seu quarto durante muitos anos, carregando as consequências do abuso, até na família, diariamente. As pessoas abusadas por vezes sentem-se aprisionadas entre a vida e a morte. Estas são realidades que não podemos eliminar, por muito dolorosas que sejam.
O testemunho dos sobreviventes representa uma ferida aberta no corpo de Cristo que é a Igreja. Exorto-vos a trabalhar diligente e corajosamente para tornar estas feridas conhecidas, para procurar aqueles que delas sofrem e reconhecer nestas pessoas o testemunho do nosso Salvador sofredor. Pois a Igreja conhece o Senhor Ressuscitado na medida em que o segue como Servo sofredor. Este é o caminho para todos nós: bispos, superiores religiosos, sacerdotes, diáconos, pessoas consagradas, catequistas, fiéis leigos. Cada membro da Igreja, de acordo com o seu estado, é chamado a assumir a responsabilidade de prevenir abusos e de trabalhar pela justiça e pela cura.
Agora gostaria de dizer uma palavra sobre o vosso futuro. Com a Constituição Apostólica Praedicate Evangelium — o Cardeal mencionou-a — estabeleci formalmente a Comissão como parte da Cúria Romana, no âmbito do Dicastério para a Doutrina da Fé (cf. n. 78). Talvez algumas pessoas possam pensar que esta colocação possa pôr em risco a vossa liberdade de pensamento e ação, ou talvez até diminuir a importância das questões das quais vos ocupeis. Não é esta a minha intenção nem a minha expetativa. E convido-vos a permanecer vigilantes para que isto não aconteça.
A Comissão para a Tutela dos Menores foi instituída no Dicastério que se ocupa dos abusos sexuais por parte dos membros do clero. Ao mesmo tempo, fiz distinção entre a vossa direção e os vossos funcionários, e continuareis a relacionar-vos diretamente comigo através do vosso Presidente Delegado. Está [colocada] ali, porque não se poderia ter uma “comissão satélite” que se deslocasse sem estar ligada ao organograma. Está lá, mas com um presidente próprio nomeado pelo Papa. Desejo que proponhais os melhores métodos para a Igreja proteger os menores e as pessoas vulneráveis e que ajudeis os sobreviventes a sarar, tendo em conta que a justiça e a prevenção são complementares. De facto, o vosso serviço proporciona uma visão proativa e prospetiva das melhores práticas e procedimentos que podem ser implementados em toda a Igreja.
Foram lançadas sementes importantes a este respeito, de muitos quadrantes, mas há ainda muito a fazer. A Constituição Apostólica marca um novo começo. [Coloca-se] no organograma da Cúria naquele Dicastério, mas sois independentes, com um presidente nomeado pelo Papa. Independentes. É vossa tarefa expandir o alcance desta missão de modo a que a tutela e o cuidado de pessoas abusadas se tornem a norma em todas os âmbitos da vida da Igreja. A vossa estreita colaboração com o Dicastério para a Doutrina da Fé e com outros Dicastérios deve enriquecer o vosso trabalho e ele, por sua vez, deve enriquecer o da Cúria e das Igrejas locais. O modo como isto pode ser feito da forma mais eficaz deixo-o à Comissão e ao Dicastério, aos Dicastérios. Trabalhando em conjunto, eles dão expressão concreta ao dever da Igreja de proteger quantos se encontram sob a sua responsabilidade. Tal dever baseia-se na conceção da pessoa humana na sua dignidade intrínseca, com especial atenção para com os mais vulneráveis. O compromisso a nível da Igreja universal e das Igrejas particulares implementa o plano de proteção, cura e justiça, de acordo com as suas respetivas competências.
As sementes que foram lançadas estão a começar a dar bons frutos. A incidência de abusos contra menores por parte do clero tem mostrado um declínio durante vários anos nas partes do mundo onde existem dados e recursos fiáveis. Anualmente, gostaria que me preparásseis um relatório sobre as iniciativas da Igreja para proteger os menores e os adultos vulneráveis. Isto pode ser difícil no início, mas peço-vos que comeceis por onde é necessário para podermos fornecer um relatório fiável sobre o que acontece e o que precisa de mudar, para que as autoridades competentes possam agir. Tal relatório será um fator de transparência e responsabilidade e — espero — dará uma indicação clara do nosso progresso neste compromisso. Se não houver progresso, os fiéis continuarão a perder a confiança nos seus pastores, tornando cada vez mais difícil a proclamação e o testemunho do Evangelho.
Contudo, existem também necessidades mais imediatas que a Comissão pode ajudar a resolver, especialmente para o bem-estar e cuidado pastoral das pessoas que foram abusadas. Segui com interesse as formas como a Comissão, desde a sua criação, tem providenciado lugares para ouvir e reunir-se com as vítimas e sobreviventes. Fostes de grande ajuda na minha missão pastoral para aqueles que vieram até mim com as suas dolorosas experiências. É por isso que vos exorto a ajudar as Conferências episcopais — e isto é muito importante: ajudar e supervisionar no diálogo com as Conferências episcopais — a criar centros especiais onde as pessoas que sofreram abusos e os seus familiares possam encontrar acolhimento e escuta atenta e ser acompanhadas num caminho de cura e justiça, como indicado no Motu Proprio Vos estis lux mundi (cf. art. 2). Este compromisso será também uma expressão da natureza sinodal da Igreja, da comunhão, da subsidiariedade. Não vos esqueçais da reunião que tivemos há quase três anos com os Presidentes das Conferências episcopais. Eles devem constituir comissões e todos os meios para levar a cabo os processos de cuidado das pessoas abusadas, com todos os métodos de que dispõem, e também para os abusadores, como os punir. E deveis supervisionar isto. Por favor, recomendo-vos.
Prezados irmãos e irmãs, agradeço-vos de coração todo o trabalho que realizastes. Rezo por vós e peço-vos que oreis por mim, pois este trabalho não é fácil. Obrigado! Deus continue a derramar as suas bênçãos sobre vós. Deus vos abençoe, obrigado!