· Cidade do Vaticano ·

No livro de Francisco “Contro la guerra. Il coraggio di costruire la pace” [Contra a guerra. A coragem de construir a paz]

Aquele sacrilégio que causa suplícios à vida inocente

Service members of pro-Russian troops ride an armoured vehicle during fighting in Ukraine-Russia ...
20 abril 2022

Há um ano, na minha peregrinação ao atormentado Iraque, pude observar pessoalmente o desastre causado pela guerra, violência fratricida e terrorismo, vendo os escombros das casas e as feridas nos corações, mas também sementes de esperança para o renascimento. Nunca teria imaginado então que um ano mais tarde um conflito irromperia na Europa. Desde o início do meu serviço como bispo de Roma falei da terceira guerra mundial, dizendo que já a estamos a viver, ainda que aos pedaços. Aqueles pedaços tornaram-se cada vez maiores, soldando-se entre si... Tantas guerras estão em curso no mundo neste momento, causando imensa dor, vítimas inocentes, especialmente crianças. Guerras que provocam a fuga de milhões de pessoas obrigadas a deixar as suas casas, as suas terras, as suas cidades destruídas para salvar a sua vida. São as muitas guerras esquecidas que reaparecem de tempos a tempos perante os nossos olhos desatentos.

Estas guerras pareciam-nos «longínquas». Até que, quase de repente, a guerra eclodiu perto de nós. A Ucrânia foi atacada e invadida. Infelizmente, muitos civis inocentes, muitas mulheres, crianças e idosos foram atingidos pelo conflito, forçados a viver em abrigos cavados no ventre da terra para escapar às bombas, com famílias que estão divididas porque maridos, pais e avôs ficam para combater, enquanto esposas, mães e avós procuram refúgio após longas viagens de esperança e atravessam a fronteira a fim de procurar abrigo noutros países que as recebem com grandeza de coração.

Perante as imagens angustiantes que vemos todos os dias, diante dos gritos das crianças e das mulheres, só podemos clamar: «Parai!». A guerra não é a solução, a guerra é uma loucura, a guerra é um monstro, a guerra é um cancro que se alimenta de si mesmo, engolindo tudo! Além disso, a guerra é um sacrilégio, que causa massacres no que é mais precioso na nossa terra, a vida humana, a inocência das criancinhas, a beleza da criação.

Sim, a guerra é um sacrilégio! Não posso deixar de recordar o apelo com que, em 1962, São João xxiii pediu aos poderosos do seu tempo que impedissem uma escalada de guerra que poderia ter arrastado o mundo para o abismo do conflito nuclear. Não posso esquecer o vigor com que São Paulo vi , dirigindo-se à Assembleia geral das Nações unidas em 1965, disse: «Nunca mais a guerra! Nunca mais a guerra!». Ou os muitos apelos à paz feitos por São João Paulo ii , que em 1991 definiu a guerra como «uma aventura sem retorno».

O que estamos a testemunhar é mais uma barbaridade e nós, infelizmente, temos uma memória curta. Sim, porque se tivéssemos uma memória, lembrar-nos-íamos do que os nossos avós e pais nos disseram, e sentiríamos a necessidade de paz tal como os nossos pulmões precisam de oxigénio. A guerra abala tudo, é mera loucura, o seu único objetivo é a destruição, e desencadeia-se e cresce precisamente através da destruição. Se tivéssemos memória, não gastaríamos dezenas, centenas de biliões em rearmamento, para nos equiparmos com armas cada vez mais sofisticadas, para aumentar o mercado e o tráfico de armas que acabam por matar crianças, mulheres e idosos: 1.981 biliões de dólares por ano, de acordo com os cálculos de um importante centro de pesquisa de Estocolmo. Isto representa um aumento dramático de 2,6% precisamente no segundo ano da pandemia, quando todos os nossos esforços deveriam ter sido concentrados na saúde global e em salvar vidas humanas do vírus.

Se tivéssemos memória, saberíamos que a guerra, antes de chegar à linha da frente, deve ser impedida no coração. O ódio, antes que seja demasiado tarde, deve ser erradicado dos corações. E para isso, precisamos de diálogo, negociação, escuta, habilidade diplomática e criatividade, e de uma política clarividente capaz de construir um novo sistema de convivência que já não se baseie em armas, no poder das armas, na dissuasão.

Cada guerra representa não só uma derrota da política, mas também uma vergonhosa rendição perante as forças do mal. Em novembro de 2019, em Hiroxima, a cidade-símbolo da segunda guerra mundial cujos habitantes foram massacrados com os de Nagasaki, por duas bombas nucleares, reafirmei que a utilização da energia atómica para fins bélicos é, hoje mais do que nunca, um crime, não só contra o homem e a sua dignidade, mas contra qualquer possibilidade de futuro na nossa casa comum. A utilização da energia atómica para fins de guerra é imoral, tal como a posse de armas atómicas é imoral.

Quem poderia imaginar que, menos de três anos mais tarde, o espectro de uma guerra nuclear estaria a pairar sobre a Europa? Assim, a pouco e pouco, estamos a caminhar para uma catástrofe. Pedaço após pedaço, o mundo corre o risco de se tornar o cenário de uma terceira guerra mundial única. Estamos a avançar em direção a ela como se fosse inevitável. Mas temos de repetir enfaticamente: não, não é inevitável! Não, a guerra não é inevitável! Quando nos permitimos ser devorados por este monstro representado pela guerra, quando permitimos que este monstro levante a cabeça e guie as nossas ações, todos perdemos, destruímos as criaturas de Deus, cometemos um sacrilégio e preparamos um futuro de morte para os nossos filhos e netos. A ganância, a intolerância, a ambição de poder, a violência, são motivos que impulsionam a decisão de ir para a guerra, e estes motivos são muitas vezes justificados por uma ideologia de guerra que esquece a dignidade incomensurável da vida humana, de cada vida humana, e o respeito e cuidado que lhe devemos.

Perante as imagens de morte que nos chegam da Ucrânia, é difícil ter esperança. No entanto, há sinais de esperança. Há milhões de pessoas que não aspiram à guerra, que não justificam a guerra, mas pedem a paz. Há milhões de jovens que nos pedem para fazer tudo, o possível e o impossível, para impedir a guerra, para parar as guerras. É pensando primeiro em todos eles, nos jovens e nas crianças, que devemos repetir juntos: nunca mais a guerra. E juntos devemos comprometer-nos a construir um mundo mais pacífico porque é mais justo, onde a paz triunfa, não a loucura da guerra; a justiça, não a injustiça da guerra; o perdão recíproco, não o ódio que nos divide e nos faz ver o outro, aquele que é diferente de nós, como um inimigo.

Apraz-me citar aqui um pastor de almas italiano, o venerável D. Tonino Bello, bispo de Molfetta-Ruvo-Giovinazzo-Terlizzi, na Apúlia, um profeta incansável da paz, que gostava de repetir: os conflitos e todas as guerras «encontram a sua raiz no desvanecimento dos rostos». Quando apagamos a face do outro, então podemos fazer crepitar o som das armas. Quando a outra pessoa, o seu rosto assim como a sua dor, estiverem diante dos nossos olhos, então não nos é permitido ferir a sua dignidade com violência.

Na encíclica Fratelli tutti, propus que o dinheiro gasto em armas e outras despesas militares fosse utilizado para constituir um fundo mundial para eliminar finalmente a fome e promover o desenvolvimento dos países mais pobres, para que os seus habitantes não recorressem a soluções violentas ou enganosas e não fossem forçados a abandonar os próprios países em busca de uma vida mais digna. Renovo esta proposta também hoje, especialmente hoje. Porque a guerra deve ser impedida, porque as guerras devem ser impedidas e só cessarão se deixarmos de as «alimentar».