O último encontro do Papa Francisco em Malta, teve lugar na tarde de domingo, 3 de abril, com os migrantes alojados no Centro do «John xxiii Peace Lab» em Hal Far. Após um prolongado diálogo com os hóspedes do Centro, o Papa transferiu-se de carro para o aeroporto internacional de Malta, onde se realizou a cerimónia de despedida. Publicamos a seguir o texto do discurso proferido pelo bispo de Roma, depois das saudações do fundador e dos testemunhos de dois migrantes africanos acolhidos no Centro intitulado ao santo Papa Roncalli.
Queridos irmãos e irmãs!
Saúdo-vos a todos com grande estima; estou contente por concluir a minha visita a Malta demorando-me um pouco convosco. Agradeço ao Padre Dionísio o seu acolhimento; e sobretudo sinto-me grato a Daniel e a Siriman pelos seus testemunhos: abristes-nos o vosso coração e a vossa vida e, ao mesmo tempo, fizestes-vos porta-vozes de tantos irmãos e irmãs, obrigados a deixar a pátria para procurar um refúgio seguro.
Como dizia há alguns meses em Lesbos, «estou aqui para vos certificar da minha proximidade (…), para contemplar os vossos rostos, para ver-vos olhos nos olhos» (Discurso em Mytilene, 05/ xii /2021). Desde o dia em que fui a Lampedusa, nunca mais vos esqueci. Sempre vos trago no coração e sempre estais presente nas minhas orações.
Neste encontro convosco, migrantes, manifesta-se plenamente o significado do lema desta minha viagem a Malta. É uma citação dos Atos dos Apóstolos, que diz: «Trataram-nos com invulgar humanidade» (28, 2). Refere-se à forma como os malteses acolheram o Apóstolo Paulo e todos aqueles que, juntamente come ele, naufragaram perto da Ilha. Trataram-nos «com invulgar humanidade». Não só com humanidade, mas com uma humanidade não comum, uma solicitude especial que São Lucas quis imortalizar no livro dos Atos. Almejo que Malta trate sempre assim aqueles que desembarcam nas suas costas, sendo verdadeiramente para eles um «porto seguro».
Nestes anos, a experiência do naufrágio foi vivida por milhares de homens, mulheres e crianças no Mediterrâneo. E, infelizmente, revelou-se trágica para muitos deles. Ainda ontem circulava a notícia do salvamento, que ocorreu na costa da Líbia, de apenas quatro migrantes de um barco que trazia cerca de noventa. Rezemos por esses nossos irmãos que encontraram a morte no nosso Mar Mediterrâneo. E rezemos também para ser salvos de outro naufrágio que se consuma ao mesmo tempo que acontecem estes factos: é o naufrágio da civilização, que ameaça não só os deslocados, mas a todos nós. Como podemos salvar-nos deste naufrágio que ameaça afundar o navio da nossa civilização? Comportando-nos com humanidade: olhar as pessoas, não como números, mas pelo que são (como nos disse Siriman), isto é, rostos, histórias, simplesmente homens e mulheres, irmãos e irmãs. E pensando que, no lugar daquela pessoa numa barcaça ou no mar que vejo na televisão ou numa fotografia, no lugar dela poderia estar eu, o meu filho ou a minha filha… Talvez mesmo neste momento, enquanto aqui nos encontramos, haja barcaças que estão a atravessar o mar de sul a norte! Rezemos por estes irmãos e irmãs que arriscam a vida no mar à procura de esperança. Também vós vivestes este drama, e chegastes aqui.
As vossas histórias fazem pensar noutras de milhares e milhares de pessoas que, nos dias passados, foram obrigadas a fugir da Ucrânia por causa daquela guerra injusta e selvagem; mas também nas histórias de muitos outros homens e mulheres que, à procura de um lugar seguro, tiveram de deixar a própria casa e nação na Ásia, na África e nas Américas... penso nos rohingas. Penso em todos eles e, por eles, ofereço neste momento a minha oração.
Há algum tempo recebi, deste vosso Centro, outro testemunho: a história de um jovem que contava o doloroso momento em que tivera de deixar a sua mãe e a sua família de origem. Aquilo comoveu-me e fez-me pensar. Mas também tu, Daniel, também tu, Siriman, e cada um de vós viveu esta experiência de partir desprendendo-se das suas raízes. É uma separação. Uma separação que deixa marcas. E não se trata de um sofrimento momentâneo, emotivo; deixa uma ferida profunda no caminho de crescimento de um jovem, de uma jovem. Será preciso tempo para curar esta ferida; é preciso tempo e sobretudo são precisas experiências ricas em humanidade: encontrar pessoas acolhedoras que saibam ouvir, compreender, acompanhar; e também estar junto com outros companheiros de viagem para compartilhar, carregar o peso juntos... Isto ajuda a curar as feridas.
Penso nos centros de acolhimento… Como é importante que sejam lugares de humanidade! Sabemos que é difícil, há tantos fatores que alimentam tensões e rigidez. E todavia, em cada continente, há pessoas e comunidades que aceitam o desafio, cientes de que a realidade das migrações é um sinal dos tempos no qual está em jogo a civilização. E para nós, cristãos, está em jogo também a fidelidade ao Evangelho de Jesus, que disse: «Era forasteiro e Me recolhestes» (Mt 25, 35). Isto não se cria num dia! É preciso tempo; é precisa muita paciência e sobretudo um amor feito de proximidade, de ternura e de compaixão, como é o amor de Deus por nós. Penso que devemos dizer um grande «obrigado» a quem aceitou tal desafio aqui em Malta e deu vida a este Centro. Façamo-lo, todos juntos, com um aplauso!
Permiti-me, irmãos e irmãs, de expressar um sonho meu: que vós, migrantes, depois de ter experimentado um acolhimento rico em humanidade e fraternidade, possais tornar-vos pessoalmente testemunhas e animadores de acolhimento e fraternidade. Aqui e onde Deus quiser, onde a Providência guiar os vossos passos. Este é o sonho que desejo partilhar convosco e coloco nas mãos de Deus, porque o que é impossível para nós, não o é para Ele. Considero muito importante que, no mundo atual, os migrantes se tornem testemunhas dos valores humanos essenciais para uma vida digna e fraterna. São valores que trazeis dentro de vós mesmos, que pertencem às vossas raízes. Uma vez curada a ferida da separação, do desenraizamento, podeis fazer emergir esta riqueza que trazeis dentro de vós, um património de humanidade preciosíssimo, e colocá-la em comum com as comunidades onde sois acolhidos e nos ambientes onde vos inseris. Este é o caminho! O caminho da fraternidade e da amizade social. Aqui está o futuro da família humana, num mundo globalizado. Fico feliz em ter podido hoje partilhar este sonho convosco, assim como vós, nos vossos testemunhos, partilhastes os vossos sonhos comigo!
Parece-me estar aqui também a resposta à questão que está no centro do teu testemunho, Siriman. Lembraste-nos que, quem tem de deixar o próprio país, parte com um sonho no coração: o sonho da liberdade e da democracia. Este sonho colide com uma realidade dura, frequentemente perigosa, por vezes terrível, desumana. Tu deste voz ao apelo sufocado de milhões de migrantes cujos direitos fundamentais são violados, até às vezes, infelizmente, com a cumplicidade das autoridades competentes. Isso acontece e — quero repeti-lo — às vezes, infelizmente, com a cumplicidade das autoridades competentes. E chamaste a atenção para o ponto-chave: a dignidade da pessoa. Repito-o agora valendo-me das tuas palavras: vós não sois números, mas pessoas de carne e osso, rostos, sonhos por vezes destroçados.
Pode-se e deve-se recomeçar daqui: das pessoas e da sua dignidade. Não nos deixemos enganar por aqueles que dizem: «Não há nada a fazer», «são problemas maiores do que nós», «eu meto-me na minha vida e os outros que se arranjem». Não; não caiamos nesta armadilha. Respondamos ao desafio dos migrantes e refugiados com o estilo da humanidade, acendamos fogueiras de fraternidade à volta das quais as pessoas se possam aquecer, reanimar, reacender a esperança. Reforcemos o tecido da amizade social e a cultura do encontro, começando por lugares como este, que talvez não sejam perfeitos, mas são «laboratórios de paz».
E já que este Centro é intitulado ao Papa São João xxiii , gostaria de recordar o que ele escreveu no final da sua memorável Encíclica sobre a Paz: «Afaste [o Senhor] dos corações dos homens quanto pode pôr em perigo a paz e os transforme a todos em testemunhos da verdade, da justiça e do amor fraterno. Ilumine com a sua luz a mente dos responsáveis dos povos, para que, junto com o justo bem-estar dos próprios concidadãos, lhes garantam o belíssimo dom da paz. Inflame Cristo a vontade de todos os seres humanos para abaterem barreiras que dividem, para corroborarem os vínculos da caridade mútua, para compreenderem os outros, para perdoarem aos que lhes tiverem feito injúrias. Sob a inspiração da sua graça, tornem-se todos os povos irmãos e floresça neles e reine para sempre essa tão suspirada paz» (Pacem in terris, 171).
Queridos irmãos e irmãs, daqui a pouco juntamente com alguns de vós, acenderei uma vela diante da imagem de Nossa Senhora. Um gesto simples, mas com um grande significado. Na tradição cristã, aquela pequena chama é símbolo da fé em Deus e é também símbolo da esperança, uma esperança que Maria, nossa Mãe, sustenta nos momentos mais difíceis. É a esperança que hoje vi nos vossos olhos, que deu sentido à vossa viagem e vos fará continuar para diante. Que Nossa Senhora vos ajude a não perder jamais esta esperança! A Ela confio cada um de vós e as vossas famílias, levo-vos comigo no coração e ter-vos-ei presente na minha oração. E também vós — vo-lo recomendo — não vos esqueçais de rezar por mim. Obrigado!