A missa dominical na praça dos Celeiros em Floriana, na presença de mais de vinte mil fiéis, representou o momento central da viagem do Papa Francisco a Malta. Da basílica de São Paulo em Rabat, o Pontífice deslocou-se de carro até à paróquia de Nossa Senhora da Medalha Milagrosa — na qual está conservado o túmulo de São Jorge Preca — de onde, de papamóvel, se transferiu até ao lugar onde fora preparado o altar para a celebração. Eis o texto da homilia proferida pelo bispo de Roma depois da leirura do Evangelho.
Jesus, «de madrugada, voltou outra vez para o templo e todo o povo vinha ter com Ele» (Jo 8, 2). Assim começa o episódio da mulher adúltera. O horizonte aparece sereno: uma manhã no lugar santo, no coração de Jerusalém. Protagonista é o povo de Deus, que no átrio do templo procura Jesus, o Mestre: deseja escutá-lo, porque a sua palavra ilumina e encoraja. A sua doutrina não de forma alguma abstrata: toca a vida e liberta-a, transforma-a, renova-a. Nisto se revela a intuição, o “faro” do povo de Deus, que não se contenta com o templo feito de pedras, mas reúne-se à volta da pessoa de Jesus. Nesta página, vislumbra-se o povo dos crentes de todos os tempos, o povo santo de Deus, que aqui em Malta é numeroso e vivaz, fiel na busca do Senhor, ligado a uma fé concreta, vivida. Por tudo isso vos agradeço!
Na presença do povo que o veio encontrar, Jesus não tem pressa: «sentou-se — diz o Evangelho — e pôs-se a ensinar» (8, 2). Mas, na escola de Jesus, há lugares vazios. Há alguns ausentes: são a mulher e os seus acusadores. Não foram ter com o Mestre como os outros, sendo diversas as razões da ausência: escribas e fariseus pensam que já sabem tudo, não precisam do ensinamento de Jesus; ao passo que a mulher é uma pessoa perdida, extraviada procurando a felicidade por caminhos errados. Temos, pois, ausências por motivos diferentes, como aliás será diferente o desfecho da própria vicissitude. Detenhamo-nos nestes ausentes.
Em primeiro lugar, os acusadores da mulher. Neles vemos a imagem daqueles que se vangloriam de ser justos, observadores da lei de Deus, pessoas regradas e justas. Não se preocupam com os próprios defeitos, mas mostram-se muito atentos na descoberta dos alheios. Assim se apresentam a Jesus: não com o coração disponível para o escutarem, mas «para o fazerem cair numa armadilha e terem de que o acusar» (8, 6). É um intento que fotografa a interioridade destas pessoas cultas e religiosas, que conhecem as Escrituras, frequentam o templo, mas subordinam tudo isto aos próprios interesses e não combatem os pensamentos maus que se agitam no seu coração. Aos olhos do povo, parecem peritos de Deus, e contudo não reconhecem Jesus; antes pelo contrário, veem-no como um inimigo que precisam de eliminar. Para o conseguir, colocam diante d’Ele uma pessoa, como se fosse uma coisa, chamando-a desdenhosamente «esta mulher» e denunciando publicamente o seu adultério. Pressionam para que a mulher seja apedrejada, derramando sobre ela a aversão que eles sentem pela compaixão de Jesus. E fazem tudo isto sob o manto da sua fama de homens religiosos.
Irmãos e irmãs, estas pessoas dizem-nos que, até na nossa religiosidade, se podem insinuar a traça da hipocrisia e o vício de apontar o dedo; e isto a todo o momento, em qualquer comunidade. Há sempre o perigo de entender mal Jesus, ter o seu nome nos lábios, mas negá-lo nas obras. E pode-se fazê-lo mesmo quando se levantam estandartes com a cruz. Então como saber se somos discípulos na escola do Mestre? Pelo nosso olhar, pelo modo como olhamos para o próximo e como olhamos para nós mesmos. Aqui está o ponto para definir a nossa pertença.
Pelo modo como olhamos para o próximo: se o fazemos como Jesus nos faz ver hoje, isto é, com um olhar de misericórdia, ou de forma inquisitória, por vezes até desdenhosa, como os acusadores do Evangelho, que se erguem como defensores da Deus, mas não se apercebem de espezinhar os irmãos. Na realidade, quem julga defender a fé apontando o dedo contra os outros, até pode possuir uma visão religiosa, mas não adota o espírito do Evangelho, porque esquece a misericórdia, que é o coração de Deus.
Para compreender se somos verdadeiros discípulos do Mestre, é preciso verificar também como olhamos para nós mesmos. Os acusadores da mulher estão convencidos de que não têm nada a aprender. Com efeito a aparência externa é perfeita, mas falta a verdade do coração. São a figura dos crentes de cada época que fazem da fé um elemento de fachada, onde sobressai o aspeto exterior solene, mas falta a pobreza interior, que é o tesouro mais precioso do homem. De facto, para Jesus o que conta é a abertura disponível de quem não se sente perfeito, mas necessitado de salvação. Por isso, quando estivermos em oração e mesmo quando tomarmos parte em belas cerimónias religiosas, será bom perguntar-nos se estamos sintonizados com o Senhor. Podemos perguntá-lo diretamente a Ele: “Jesus, estou aqui convosco, mas Vós que quereis de mim? Que quereis que mude no meu coração, na minha vida? Como quereis que veja os outros?”. Ser-nos-á útil rezar assim, porque o Mestre não se satisfaz com a aparência, mas busca a verdade do coração. E quando lhe abrimos de verdade o coração, Jesus pode operar maravilhas em nós.
Vemos acontecer isto mesmo na mulher adúltera. A sua situação parece irremediável, mas aos seus olhos abre-se um horizonte novo, antes inconcebível. Coberta de insultos, pronta a receber palavras implacáveis e severos castigos, com maravilha sua vê-se absolvida por Deus, que lhe abre de par em par um futuro inesperado: «Ninguém te condenou? — diz-lhe Jesus — Também Eu não te condeno. Vai e de agora em diante não tornes a pecar» (8, 10.11). Que diferença entre o Mestre e os acusadores! Estes citaram a Escritura para condenar; Jesus, Palavra de Deus em pessoa, reabilita completamente a mulher, restituindo-lhe a esperança. Deste caso, aprendemos que qualquer advertência, se não for movida pela caridade e não contiver caridade, afunda ainda mais quem a recebe. Deus, pelo contrário, deixa sempre aberta uma possibilidade e sabe encontrar sempre caminhos de libertação e salvação.
A vida daquela mulher muda graças ao perdão. Encontraram-se a Misericórdia e a miséria. Estão ali Misericórdia e miséria. E a mulher muda. Apetece-me pensar que, perdoada por Jesus, ela por sua vez aprendeu a perdoar. Talvez passasse a ver os seus acusadores, já não como pessoas rígidas e perversas, mas como aqueles que lhe permitiram encontrar Jesus. O Senhor quer que também nós, seus discípulos, nós como Igreja, perdoados por Ele, nos tornemos testemunhas incansáveis de reconciliação: testemunhas de um Deus para o qual não existe a palavra «irrecuperável»; de um Deus que sempre perdoa, sempre. Deus perdoa sempre. Somos nós que nos cansamos de pedir perdão. Um Deus que continua a crer em nós e todas as vezes dá a possibilidade de recomeçar. Não há pecado ou fracasso que, levados a Ele, não possam tornar-se ocasião para começar uma vida nova, diferente, sob o signo da misericórdia. Não há pecado que não se possa superar por esta estrada. Deus perdoa tudo. Tudo.
Assim é o Senhor Jesus; sabe-o bem quem fez experiência do seu perdão; quem, como a mulher do Evangelho, descobre que Deus nos visita através das nossas chagas interiores: é sobretudo nestas que o Senhor prefere fazer-se presente, pois não veio para os sãos, mas para os doentes (cf. Mt 9, 12). E hoje esta mulher, que conheceu a misericórdia na sua miséria e volta curada pelo perdão de Jesus, sugere-nos, como Igreja, que principiemos de novo a frequentar a escola do Evangelho, a escola do Deus da esperança que sempre nos surpreende. Se o imitarmos, não seremos levados a concentrar-nos na denúncia dos pecados, mas a sair amorosamente à procura dos pecadores. Não ficaremos a contar os presentes, mas iremos em busca dos ausentes. Não voltaremos a apontar o dedo, mas começaremos a pôr-nos à escuta. Não descartaremos os desprezados, mas olharemos como primeiros aqueles que são considerados últimos. Isto, irmãos e irmãs, é o que Jesus nos ensina hoje com o exemplo. Deixemo-nos surpreender por Ele e acolhamos com alegria a sua novidade.