«Posso dar um testemunho pessoal. Aprendi o ódio e a raiva pela guerra do meu avô, que combateu no Piave em 1914. Porque ele me falou dos sofrimentos da guerra». O Papa Francisco partilhou esta confidência, improvisando algumas palavras durante a catequese da audiência geral realizada na quarta-feira, 23 de março, na Sala Paulo vi. “ A despedida e o legado: memória e testemunho” foi o tema da quarta catequese do Pontífice dedicada à velhice. A seguir, as suas palavras.
Prezados irmãos e irmãs
bom dia!
Na Bíblia, a narração da morte do velho Moisés é precedida pelo seu testamento espiritual, chamado “Cântico de Moisés”. Este Cântico é, em primeiro lugar, uma bonita profissão de fé, que reza assim: «Proclamarei o nome do Senhor: / darei glória ao nosso Deus! / Ele é a Rocha: perfeitas são as suas obras / justos, todos os seus caminhos; / Ele é um Deus de lealdade, não de iniquidade; é justo e reto» (Dt 32, 3-4). Mas é também a memória da história vivida com Deus, das aventuras do povo formado a partir da fé no Deus de Abraão, Isaac e Jacob. E, portanto, Moisés também se recorda das amarguras e desilusões do próprio Deus: a sua fidelidade continuamente posta à prova pela infidelidade do seu povo. O Deus fiel e a resposta do povo infiel: como se o povo quisesse pôr à prova a fidelidade de Deus. E Ele permanece sempre fiel, próximo do seu povo. Este é precisamente o cerne do Cântico de Moisés: a fidelidade de Deus que nos acompanha ao longo de toda a vida.
Quando Moisés pronuncia esta profissão de fé, está no limiar da terra prometida, e também da sua despedida da vida. Tinha cento e vinte anos, lê-se na narração, «mas a sua vista nunca enfraqueceu» (Dt 34, 7). A capacidade de ver, de ver realmente, de ver até simbolicamente, como os idosos, que sabem ver as coisas, o significado mais profundo das coisas. A vitalidade do seu olhar é um dom precioso: permite-lhe transmitir a herança da sua longa experiência de vida e de fé, com a necessária lucidez. Moisés vê a história e transmite-a; os idosos veem a história e transmitem-na.
Uma velhice à qual é concedida esta lucidez é um dom precioso para a geração que há de vir. A escuta pessoal e direta da narração da história de fé vivida, com todos os seus altos e baixos, é insubstituível. Lê-la nos livros, vê-la nos filmes, consultá-la na internet, por muito útil que seja, nunca será a mesma coisa. Esta transmissão — que é a verdadeira tradição, a transmissão concreta do idoso ao jovem! — esta transmissão falta muito hoje, e cada vez mais, às novas gerações. Porquê? Porque segundo esta nova civilização os idosos são material descartável, os velhos devem ser descartados. É uma brutalidade! Não, não deve ser assim! A narração direta, de pessoa a pessoa, tem tons e modos de comunicação que nenhum outro meio pode substituir. Um idoso que viveu muito tempo, e recebe o dom de um testemunho lúcido e apaixonado da sua história, é uma bênção insubstituível. Seremos nós capazes de reconhecer e honrar este dom dos idosos? A transmissão da fé — e do sentido da vida — segue hoje este caminho de escuta dos idosos? Posso dar um testemunho pessoal. Aprendi o ódio e a raiva pela guerra com o meu avô, que combateu no Piave em 1914: ele transmitiu-me esta raiva pela guerra. Porque me falou sobre os sofrimentos da guerra. E isto não se aprende nos livros, nem de outra forma; aprende-se assim, transmitindo-o dos avós aos netos. E isto é insubstituível. A transmissão da experiência de vida dos avós aos netos. Hoje, infelizmente, não é assim, e pensa-se que os avós são material descartável: não! São a memória viva de um povo, e os jovens e as crianças devem ouvir os avós.
Na nossa cultura, tão “politicamente correta”, este caminho parece ser impedido de muitas maneiras: na família, na sociedade, na própria comunidade cristã. Alguns até propõem a abolição do ensino da história, como informação supérflua sobre mundos que já não são atuais, que tira recursos ao conhecimento do presente. Como se tivéssemos nascido ontem!
Por outro lado, a transmissão da fé carece frequentemente da paixão própria de uma “história vivida”. Transmitir a fé não é dizer coisas, “blá-blá-blá”. É narrar a experiência de fé. Então, dificilmente pode levar a escolher o amor para sempre, a fidelidade à palavra dada, a perseverança na dedicação, a compaixão pelos rostos feridos e desanimados? Claro, as histórias da vida devem ser transformadas em testemunho, e o testemunho deve ser leal. Não é certamente leal a ideologia que limita a história aos próprios esquemas; não é leal a propaganda que adapta a história à promoção do próprio grupo; não é leal fazer da história um tribunal no qual se condena todo o passado, desencorajando-se qualquer futuro. Ser leal significa contar a história tal como ela é, e só quem a viveu a pode narrar bem. Por isso, é muito importante ouvir os idosos, ouvir os avós, é importante que as crianças conversem com eles.
Os próprios Evangelhos narram honestamente a história abençoada de Jesus, sem esconder os erros, os desentendimentos e até as traições dos discípulos. Esta é a história, a verdade, o testemunho. Este é o dom da memória que os “anciãos” da Igreja transmitem, desde o início, passando-o “de mão em mão” à geração seguinte. Far-nos-á bem perguntar-nos: como valorizamos este modo de transmitir a fé, na passagem do testemunho entre os idosos da comunidade e os jovens que se abrem ao futuro? E aqui vem-me à mente algo que já disse muitas vezes, mas que gostaria de repetir. Como se transmite a fé? “Ah, eis um livro, estuda-o”: não! Assim não se pode transmitir a fé. A fé transmite-se em dialeto, ou seja, na conversa familiar, entre avós e netos, entre pais e netos. A fé transmite-se sempre em dialeto, no dialeto familiar e experiencial que se aprende ao longo dos anos. Por isso é tão importante o diálogo na família, o diálogo das crianças com os avós, que têm a sabedoria da fé.
Às vezes reflito sobre esta estranha anomalia. Hoje, o catecismo da iniciação cristã inspira-se generosamente na Palavra de Deus e transmite informações exatas sobre os dogmas, a moral da fé e os sacramentos. No entanto, muitas vezes falta um conhecimento da Igreja que derive da escuta e do testemunho da história real da fé e da vida da comunidade eclesial, desde o princípio até aos dias de hoje. Na infância, aprendemos a Palavra de Deus nas aulas de catecismo; mas quando se é jovem “aprende-se” a Igreja nas salas de aula e nos meios de comunicação da informação global.
A narração da história da fé deveria ser como o Cântico de Moisés, como o testemunho dos Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos. Ou seja, uma história capaz de evocar com emoção as bênçãos de Deus e com lealdade as nossas falhas. Seria bom se, desde o início, nos itinerários de catequese houvesse também o hábito de ouvir, da experiência vivida pelos idosos, a lúcida confissão das bênçãos recebidas de Deus, que devemos preservar, e o testemunho leal das nossas faltas de fidelidade, que devemos reparar e corrigir. Os idosos entram na terra prometida, que Deus deseja para cada geração, quando oferecem aos jovens a bonita iniciação do seu testemunho e transmitem a história da fé, a fé em dialeto, em dialeto familiar, naquele dialeto que passa dos idosos para os jovens. Assim, guiados pelo Senhor Jesus, idosos e jovens entram juntos no seu Reino de vida e de amor. Mas todos juntos. Todos em família, com este grande tesouro que é a fé transmitida em dialeto.