Na manhã de 12 de março, o Papa Francisco presidiu à inauguração do 93º ano judiciário do Tribunal do Estado da Cidade do Vaticano. A seguir o discurso proferido pelo Pontífice durante o encontro na Sala da Bênção.
Ilustres Senhoras e Senhores!
Sinto-me feliz por me encontrar convosco para a inauguração do 93º ano judiciário do Tribunal do Estado da Cidade do Vaticano.
Saúdo o Cardeal Mamberti, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, e os Cardeais juízes do mesmo Tribunal. Saúdo monsenhor Arellano Cedillo e os juízes do Tribunal de Apelação. Agradeço, em particular, ao Presidente do Tribunal, Giuseppe Pignatone, e ao Promotor de Justiça, Gian Piero Milano, aos magistrados dos respetivos gabinetes e aos seus colaboradores, pela dedicação com que se comprometem ao delicado serviço da administração da justiça. Estou igualmente satisfeito e grato pela presença de vários representantes dos mais altos tribunais do Estado italiano. Faço-vos os melhores votos para o Ano judiciário que hoje inauguramos.
A vossa presença qualificada e numerosa realça a importância que atribuímos a esta ocasião, que é uma oportunidade de encontro e de diálogo entre as pessoas comprometidas no mundo das instituições e, em particular, da justiça. De facto, num momento tão crítico para a humanidade, em que a ideia do bem comum — que é muito mais do que a soma dos bens individuais — está a ser posta à prova, trata-se de um compromisso difícil e carregado de responsabilidade. Diz respeito aos valores fundamentais da nossa convivência e realiza-se num campo que representa uma área privilegiada de convergência e colaboração entre crentes e não-crentes.
A primeira reflexão que desejo partilhar nasce do percurso sinodal que estamos a viver. Com efeito, este percurso, como recordei numa ocasião recente (cf. Discurso para a inauguração do ano judiciário do Tribunal da Rota Romana), interpela também a esfera judicial.
A sinodalidade implica antes de tudo caminhar juntos. Nas vicissitudes judiciais isto significa que todos os participantes no processo, embora na necessária diversidade de papéis e interesses, são chamados a contribuir para o apuramento da verdade através do contraditório, do confronto de argumentos e do exame cuidadoso das provas.
Este caminhar juntos requer, por conseguinte, um exercício de escuta, que, como sabemos, está na própria natureza de um julgamento justo. Na atividade judicial, exige-se dos magistrados um exercício constante de escuta honesta do que é argumentado e demonstrado pelas partes, sem preconceitos nem noções preconcebidas em relação a elas. Com a mesma disponibilidade de ouvir, o que requer tempo e paciência, cada membro do colégio de juízes deve estar aberto às razões apresentadas pelos outros membros, a fim de chegar a um julgamento ponderado e partilhado. Escutar todos.
O discernimento sério e paciente é, portanto, essencial para chegar a uma sentença justa e para que a natureza e o objetivo do julgamento sejam realizados. Deve ser um processo de justiça para as pessoas envolvidas e, ao mesmo tempo, uma reparação da harmonia social que olhe para o futuro e ajude a recomeçar.
Para tal finalidade, as exigências de justiça implicam uma avaliação comparativa de posições e interesses opostos e exigem uma reparação. Além disso, nos julgamentos penais, a justiça deve ser sempre combinada com as exigências de misericórdia, que em última análise requerem conversão e perdão. Existe uma complementaridade entre estes dois polos e há que procurar um equilíbrio, sabendo que, se é verdade que a misericórdia sem justiça conduz à dissolução da ordem social, também é verdade que «a misericórdia é a plenitude da justiça e a manifestação mais luminosa da verdade de Deus» (Exort. ap. pós-sin. Amoris laetitia, 311).
Nesta perspetiva, o recurso à equidade, sabiamente definida como a justiça do caso individual, é precioso. Enquanto o preceito legislativo permanece firme, quando a lei geral é aplicada leva à necessidade de ter em conta as exigências do caso concreto, de situações factuais particulares merecedoras de consideração específica. O recurso à equidade não é uma prerrogativa exclusiva do direito canónico, mas sem dúvida encontra nele reconhecimento e valorização, estando intimamente relacionado com o preceito da caridade evangélica, verdadeiro princípio inspirador de toda a ação da Igreja.
O direito canónico, como se sabe, tendo em consideração a natureza particular do Estado da Cidade do Vaticano, é reconhecido no sistema jurídico do Vaticano como «a primeira fonte normativa e o primeiro critério de referência para a interpretação» (art. 1 da Lei sobre as fontes N. lxxi de 1 de outubro de 2008).
Por outro lado, é preciso recordar que nas matérias não abrangidas pela lei da Igreja e pelas outras “fontes principais” do direito (indicadas no artigo 1 da Lei sobre as fontes), observam-se, de modo supletivo e prévia transposição por parte da competente autoridade vaticana, as leis e outros atos normativos emitidos no Estado italiano, contanto que não resultem contrários aos preceitos do direito próprio, aos princípios gerais do direito canónico, nem às normas dos Pactos Lateranenses e sucessivos Acordos (cf. art. 3 da Lei sobre as fontes cit.).
Relativamente a um quadro normativo tão articulado, resulta evidente a ratio da disciplina acerca da nomeação dos magistrados, contida na lei recentemente alterada sobre o ordenamento judiciário (art. 8). Ela estabelece que os magistrados do Tribunal devem ser — cito — «escolhidos de preferência entre professores universitários [...] e, de qualquer forma, entre juristas de reputação clara que tenham amadurecido uma experiência comprovada no âmbito judicial ou forense, civil, penal ou administrativo», e «em qualquer caso, é assegurada a presença de pelo menos um magistrado perito em direito canónico e eclesiástico» (art. 8). Tal disposição visa garantir, no seio do Colégio de juízes e do Gabinete do Promotor de justiça, a presença de competências que ajudem a garantir o melhor conhecimento de um sistema de fontes tão peculiar e complexo como o do Vaticano, e a possibilidade de decisões autorizadas e fiáveis.
Nesta perspetiva, o trabalho que os magistrados realizam para garantir o exercício da justiça oferece uma contribuição necessária e plenamente legítima para a solução dos problemas civis e penais, que são adicionais e diferentes dos que são da competência dos Tribunais Apostólicos e canónicos. Este trabalho está destinado a aumentar numa época de reformas como a que está em curso há algum tempo, que prosseguiu ao longo do ano passado, com algumas inovações significativas tanto na esfera económica e financeira como na área da justiça. Estas reformas destinam-se a corresponder, por um lado, aos parâmetros desenvolvidos pela comunidade internacional em várias áreas, tais como a economia e, por outro, à necessidade da própria Igreja de adaptar todas as suas estruturas a um estilo cada vez mais evangélico.
Na primeira frente, foram introduzidas disposições para encorajar o processo de contenção de despesas,1 infelizmente tornado ainda mais urgente pelas dificuldades causadas pela pandemia, e para reforçar ainda mais a transparência na gestão das finanças públicas2 que, numa realidade como a Igreja, deve ser exemplar e irrepreensível, especialmente por parte daqueles que detêm importantes posições de responsabilidade.
No que respeita ao sector da justiça, a intenção era responder, através de alterações e aditamentos específicos, a algumas necessidades de atualização do quadro regulamentar, o que exigia a superação de estruturas que agora são inadequadas. A procura de justiça também exige reformas estruturais que permitam a sua correta aplicação. Entre as inovações mais relevantes, gostaria de sublinhar, para efeitos de uma implementação cada vez mais plena e partilhada, em particular aquelas que, ao alterar a lei do sistema judicial, estabeleceram que o Gabinete do Promotor de justiça exerça o seu papel nos três níveis de julgamento.3 Desta forma, pretendeu-se responder ao requisito prioritário de que no atual sistema processual deve haver igualdade entre todos os membros da Igreja e a sua igual dignidade e posição, sem privilégios que remontam ao passado e já não estão de acordo com as responsabilidades que cada um tem na aedificatio Ecclesiae.4
Além disso, a necessidade de atualizar a legislação do Vaticano, especialmente no âmbito do processo penal e da cooperação internacional, pode encontrar uma resposta em medidas de reforma específicas que já estão a ser estudadas, a fim de reforçar os instrumentos de prevenção e combate aos crimes, e de responder à crescente procura de justiça que se verifica também no nosso Estado.
A este respeito, podemos recordar que durante o ano passado, foram decididos vários casos judiciais complexos, relacionados com crimes financeiros ou delitos contra os bons costumes, que revelaram tanto comportamentos delituosos punidos pontualmente como condutas inadequadas que motivaram a intervenção da autoridade eclesiástica competente.
A dinâmica do julgamento deve permitir restabelecer a ordem interrompida e prosseguir a via da justiça, caminho que conduz a uma fraternidade cada vez mais plena e efetiva, na qual todos são protegidos, especialmente os mais débeis e frágeis. Com efeito, a lei e o julgamento devem estar sempre ao serviço da verdade e da justiça, bem como da virtude evangélica da caridade. Como São João Paulo ii afirmou no seu discurso para a apresentação oficial do novo Código de Direito Canónico, ao servir a causa da justiça, o direito deve ser sempre inspirado pela lei-mandamento da caridade.
Deste ponto de vista, que exclui qualquer visão autorreferencial da lei, a justiça proposta por Jesus Cristo não é tanto um conjunto de regras a serem aplicadas com competência técnica, mas antes uma disposição de vida que guia os responsáveis e requer acima de tudo um compromisso de conversão pessoal. Exige uma disposição do coração a ser implorada e alimentada na oração e graças à qual podemos cumprir os nossos deveres combinando a correção das leis com a misericórdia, que não é a suspensão da justiça, mas o seu cumprimento (cf. Rm 13, 8-10).
Caríssimos, desejo-vos que preserveis sempre esta consciência no exercício das vossas importantes responsabilidades ao serviço da justiça. Com sincera gratidão pelo vosso generoso compromisso, abençoo-vos e asseguro-vos a minha oração. E vós também, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Obrigado!
1 Cf. Carta Apostólica sob forma de “Motu Proprio” relativa à contenção das despesas relativas aos funcionários da Santa Sé, do Governatorato do Estado da Cidade do Vaticano e de outros organismos afins (23 de março de 2021).
2 Cf. Carta Apostólica sob forma de “Motu Proprio” que estabelece disposições sobre a transparência na gestão das finanças públicas (26 de abril de 2021).
3 Cf. Carta Apostólica sob forma de “Motu Proprio” Modificações em matéria de competência dos órgãos judiciários do Estado da Cidade do Vaticano (30 de abril de 2021), art. 3.
4 Cf. Discurso para a inauguração do ano judiciário do Tribunal do ecv, 27 de março de 2021.