«Ainda existem profetas». É o Papa quem fala, no final do encontro com Edith Bruck, na Casa Santa Marta. O que é importante é o gesto, a postura: os dois estão de pé, cumprimentam-se, com as mãos nas mãos, com os olhos nos olhos. Exatamente como este tinha começado, uma hora antes, este segundo encontro pessoal longe dos holofotes, do Papa com a sobrevivente de Auschwitz: os dois abraçaram-se, em silêncio, ou melhor, com palavras, sobretudo «obrigado», que se fragmentam, se desfazem.
Também no primeiro encontro, a 20 de fevereiro de 2021, tive o privilégio de participar, porque o Papa, depois de ter lido a entrevista de Francesca Romana de’ Angelis a Edith Bruck em «L’Osservatore Romano» de 26 de janeiro, me pediu para o acompanhar à sua casa. Agora foi ela que veio retribuir a visita, no dia da memória. E a memória foi o foco desta segunda conversa.
A senhora começa a narrar a sua experiência de “memória viva” e é como a cheia de um rio: «...Viajo pela Itália, e também de casa, graças à tecnologia, participo em encontros nacionais e internacionais nas plataformas, centenas de entrevistas, cidadanias honorárias, chamam-me as paróquias, as comunidades, os movimentos, as dioceses (sobretudo depois do meu encontro com Vossa Santidade, no ano passado), e depois as universidades, as escolas, escrevem-me os jovens, são maravilhosos, gostaria de dizer aos pais que os seus filhos são melhores do que imaginam...».
O Papa olha para ela, ouve-a admirado. A conversa toma outro rumo, de volta ao buraco negro do Shoah, dos campos de concentração... Edith Bruck fala de outros jovens, seus coetâneos. «Num determinado momento, chegam ao campo alguns jovens da Hitler-Jugend, a Juventude Hitleriana. Com 12 anos, ainda mais novos. Aqueles adolescentes estavam lá, “educados” pelos adultos, e o resultado era que passaram o tempo a olhar para nós, a cuspir em nós. Nas partes íntimas». A senhora cadencia lentamente as palavras, fita o Papa, os seus olhos falam. «Eu sentia uma pena terrível daqueles jovens. Como se pode chegar a tal ponto de desumanização? Durante a minha vida inteira senti esta piedade. Talvez por ter sido odiada, passei o resto da minha vida a fugir do ódio. No cinto do uniforme daqueles soldados estava escrito Gott mit uns, Deus connosco. Mas Deus, ou Javé, ou Alá, não é violência, é convivência, é paz».
O Papa continua a ouvir, acena com os olhos e de vez em quanto realça certas passagens: «A relação entre gerações, entre os idosos e os jovens, entre os avós e os netos, é fundamental!». Edith Bruck sente-se feliz pelo que lhe acontece, mas também preocupada, narra ao Papa os numerosos episódios de violência e antissemitismo que ainda se repetem, não só na Itália. «O que podemos fazer, para melhorar este mundo?, exclama. «O que a senhora já faz!», responde prontamente o Papa. «É preciso trabalhar, trabalhar... sabei que trabalhar rejuvenesce?».
Confesso que é difícil narrar o encontro entre estas duas pessoas, descrever a sua sintonia de pensamento, abranger com palavras, ou seja, com ideias e conceitos abstratos, aquela atmosfera feita de um sabor e calor inenarráveis verbalmente, de gestos e silêncios, abraços e olhares, uma pitada de humor e algumas lágrimas. Contudo, certas passagens permanecem facilmente gravadas, tais como a troca de presentes. A senhora Bruck ofereceu ao Papa o seu livro Lettera a mia madre, recentemente republicado pela editora La nave di Teseo, e Mi capirebbero le scimmie, uma coleção de poesias, traduzidas e editadas pela própria senhora Bruck, de Miklós Radnóti, o poeta húngaro citado pelo Papa na sua recente viagem a Budapeste. E depois um pão. Um lindo pão de forma de trança, cozido em casa.
Quem o fez foi a senhora Olga, que está lá, como sempre, ao lado da senhora Bruck. Olga é mais do que uma assistente, é “os olhos” e “as mãos” da senhora e faz questão de explicar ao Papa o significado do dom: é o “pão reencontrado”, referindo—se ao “pão perdido”, título do romance mais famoso de Bruck, aquele pão que Berta, mãe de Edith, estava a amassar quando foi violentamente levada pelos nazistas. Olga é natural da Ucrânia e ao sair agradece ao Papa (e pede-lhe novamente) por rezar pela sua terra. O Papa tranquiliza-a. É Olga que oferece o pão ao Papa, este é um presente que não deve ser visto mas partilhado. «A tradição diz que deve ser partido, é uma bênção», Edith explica com firmeza. Então é preciso obedecer, e cada um dos presentes pega num pedaço e come, em silêncio. Não é um dom para nós, mas para a mãe Berta, uma restituição. «A minha mãe costumava dizer que o pão nunca pode faltar, nunca. Se numa casa não há pão, não há nada».
«O pão é nobre», acrescenta o Papa, e retribui os presentes recebidos com os seus: uma medalha realizada e oferecida a ele em Jerusalém, e um xale. Dentro de uma caixa quadrada, embrulhada e adornada com um laço. «Pode abri-lo agora ou mais tarde, como quiser», diz-lhe, «mas é precisamente para a senhora, é quente, porque agora está frio». A senhora não consegue resistir e desembrulha imediatamente o presente: um xale de lã branca, macia e quente, elegante. Edith Bruck, 90 anos, sobrevivente dos horrores de seis lagers, quando o Papa entrou, em primeiro lugar disse-lhe «desta vez prometo não chorar», mas não conseguiu evitar: diante do requinte daquele presente e da delicadeza com que ele o apresentou, comoveu-se, procurou conter as lágrimas, fechada num silêncio como que atordoada, com o rosto fez contrações impossíveis para evitar o pranto, mas a sua resistência durou apenas alguns instantes.
Durante o resto do encontro, a senhora falará com o xale colocado sobre os joelhos, verificando com uma mão para que não caísse ao chão, e depois, quando chegou o momento da despedida, aperta-o ao peito e sai com passo alegre e seguro. Agora no seu coração, naquela sala, talvez no mundo, se sinta menos frio.
Andrea Monda