«O percurso sinodal em curso interpela também este nosso encontro, pois envolve a esfera judicial e a vossa missão ao serviço das famílias, especialmente das que estão feridas e necessitadas do bálsamo da misericórdia», afirmou o Papa Francisco ao receber na manhã de 27 de janeiro, na Sala Clementina, os prelados auditores, os oficiais, os advogados e os colaboradores do Tribunal Apostólico da Rota Romana, por ocasião da solene inauguração do ano judiciário. A seguir, o discurso do Pontífice.
Excelência
Estimados Prelados Auditores!
Dirijo a cada um de vós a minha saudação cordial, começando pelo Decano, Monsenhor Alejandro Arellano Cedillo, a quem agradeço as suas palavras. E obrigado pelas duas últimas coisas que pediu ao Papa: conforto e bênção. Gosto disto. É um pedido pastoral. Obrigado.
Saúdo os Oficiais, os Advogados e os demais colaboradores do Tribunal Apostólico da Rota Romana. A todos apresento os meus melhores votos para o Ano judiciário que hoje inauguramos.
O percurso sinodal em curso interpela também este nosso encontro, pois envolve a esfera judicial e a vossa missão ao serviço das famílias, especialmente das que estão feridas e necessitadas do bálsamo da misericórdia.1 Neste ano dedicado à família como expressão da alegria do amor, hoje temos a oportunidade de refletir sobre a sinodalidade nos processos de nulidade matrimonial. Embora o trabalho sinodal não seja de natureza estritamente processual, deve ser colocado em diálogo com a atividade judicial, a fim de encorajar uma reconsideração mais geral da importância da experiência do processo canónico para a vida dos fiéis que sofreram um fracasso matrimonial e, ao mesmo tempo, para a harmonia das relações dentro da comunidade eclesial. Perguntemo-nos, então, em que sentido a administração da justiça precisa de um espírito sinodal.
Antes de mais, a sinodalidade implica o caminhar juntos. Superando uma visão distorcida das causas matrimoniais, como se nelas se afirmassem meros interesses subjetivos, devemos redescobrir que todos os participantes no processo são chamados a concorrer para o mesmo objetivo, o de iluminar a verdade sobre uma união concreta entre um homem e uma mulher, e chegar a uma conclusão sobre a existência ou não de um verdadeiro matrimónio entre eles. Esta visão de caminhar juntos para um objetivo comum não é nova na compreensão eclesial destes processos. A este respeito, é célebre o discurso à Rota Romana no qual o Venerável Pio xii afirmou «a unidade do propósito, que deve dar forma especial ao trabalho e cooperação de todos os que participam no andamento das causas matrimoniais em tribunais eclesiásticos de todos os graus e géneros, e deve animá-los e uni-los na mesma unidade de propósito e ação».2 Deste ponto de vista, delineou a tarefa de cada participante no processo no que diz respeito à busca da verdade, mantendo-se fiel ao próprio papel. Se for verdadeira amada, esta verdade torna-se libertadora.3
Já na fase preliminar, quando os fiéis se encontram em dificuldades e procuram ajuda pastoral, deve haver um esforço para descobrir a verdade sobre a própria união, condição indispensável para a cura das feridas. Neste contexto, é fácil compreender a importância dos esforços para promover o perdão e a reconciliação entre os cônjuges, e também para convalidar um matrimónio nulo quando tal é possível e prudente. Deste modo, entende-se que a declaração de nulidade não deve ser apresentada como se fosse o único objetivo a ser alcançado face a uma crise matrimonial, ou como se este fosse um direito, independentemente dos acontecimentos. Ao apresentar a possibilidade de nulidade, é necessário fazer com que os fiéis reflitam sobre as razões que os levam a solicitar a declaração de nulidade do consentimento matrimonial, encorajando assim uma atitude de aceitação da sentença definitiva, mesmo que esta não corresponda às suas convicções. Só assim os processos de nulidade podem ser uma expressão de acompanhamento pastoral eficaz dos fiéis nas suas crises matrimoniais, o que significa ouvir o Espírito Santo que fala na história concreta das pessoas. Há dois ou três anos, falámos do catecumenato matrimonial.
O mesmo objetivo de busca partilhada da verdade deve caraterizar todas as fases do processo judicial. É verdade que no processo às vezes há uma dialética entre teses contrastantes; no entanto, o processo contraditório entre as partes deve ter sempre lugar em sincera adesão ao que parece ser verdade para todos, sem se fechar na própria visão, mas permanecendo abertos à contribuição dos outros participantes no processo. A disponibilidade para oferecer a própria versão subjetiva dos dados torna-se frutuosa no contexto de uma comunicação adequada com os outros, que sabe chegar até à autocrítica. Por conseguinte, qualquer alteração ou manipulação deliberada dos dados, a fim de obter um resultado pragmaticamente desejado, é inadmissível. Aqui paro, e peço desculpa, para mencionar um perigo muito grande. Quando não se supera isto, até os advogados podem fazer danos terríveis. Há um mês, um bispo veio queixar-se porque tinha um problema com um sacerdote. Um problema grave, não matrimonial, um problema sério de disciplina que merecia ir a julgamento. O juiz do tribunal nacional — não me refiro a este ou àquele país — chamou o bispo e disse-lhe: “Recebi isto. Farei o que me disser. Se me disser para o condenar, condená-lo-ei; se me disser para o absolver, absolvê-lo-ei”. Isto pode acontecer! Pode-se chegar a isto se não houver unidade nos processos, inclusive com sentenças contrastantes. Caminhar juntos, pois está em questão o bem da Igreja, o bem do povo! Não é uma negociação que se faz. Desculpai-me, mas este episódio iluminou-me muito.
Este “caminhar juntos” no juízo é válido para as partes e para os seus patrocinadores, às testemunhas chamadas a depor de acordo com a verdade, aos peritos que devem colocar os seus conhecimentos ao serviço do julgamento, e também, de forma especial, aos juízes. Com efeito, a administração da justiça na Igreja é uma manifestação do cuidado das almas, que requer solicitude pastoral para ser servidores da verdade salvífica e da misericórdia. Este ministerium veritatis assume um significado particular nos Bispos, quando julgam em primeira pessoa, especialmente em julgamentos mais breves, e quando exercem a sua responsabilidade perante os próprios tribunais, mostrando assim também a sua solicitude paterna para com os fiéis. E volto a algo que disse sempre, desde o primeiro momento: o primeiro juiz é o bispo. O decano saudou-me dizendo: “o Papa, juiz universal de todas...”. Mas isto é porque sou bispo de Roma e Roma preside a tudo, não porque tenho outro título. Obrigado por isto. Se o Papa tem este poder, é porque é bispo da diocese da qual o Senhor desejou que o bispo fosse o Papa. O verdadeiro e primeiro [juiz] é o bispo, não o vigário judicial, o bispo.
A sinodalidade nos processos implica um exercício constante de escuta. Também neste âmbito se deve aprender a escutar, o que não é simplesmente ouvir. Ou seja, é necessário compreender a visão e as razões do outro, quase identificando-se com o outro. Como noutros âmbitos da pastoral, a cultura da escuta, que é um pré-requisito para uma cultura de encontro, também deve ser favorecida na atividade judiciária. É por isso que as respostas-padrão aos problemas concretos de pessoas individuais são deletérias. Cada pessoa, com a sua experiência, muitas vezes marcada pela dor, constitui para o juiz eclesiástico a “periferia existencial” concreta, a partir da qual toda a ação pastoral judiciária deve mover-se.
O processo também requer uma escuta vigilante do que é argumentado e demonstrado pelas partes. De particular importância é a instrução preliminar, destinada a apurar os dados, exigindo que aqueles que a conduzem saibam conjugar profissionalismo justo com proximidade e escuta. Será que isto leva tempo? Sim, requer tempo. É preciso ter paciência? Sim, requer paciência. Exige paternidade pastoral? Sim, requer paternidade pastoral. Os juízes devem ser ouvintes por excelência de tudo o que surgir no processo, a favor e contra a declaração de nulidade. São obrigados a fazê-lo em virtude de um dever de justiça, animados e sustentados pela caridade pastoral. De facto, «a misericórdia é a plenitude da justiça e a manifestação mais luminosa da verdade de Deus» (Exort. ap. pós-sin. Amoris laetitia, 311). Além disso — como acontece normalmente — existe um colégio de juízes, cada juiz deve estar aberto às razões apresentadas pelos outros membros, a fim de chegar a um julgamento ponderado. Neste sentido, na vossa ação como ministros do tribunal, nunca vos deve faltar um coração pastoral, um espírito de caridade e compreensão para com as pessoas que sofrem com o fracasso da sua vida conjugal. A fim de adquirir tal estilo, é necessário evitar o beco sem saída do legalismo — que é uma espécie de pelagianismo legal; não é católico, o legalismo não é católico — ou seja, de uma visão autorreferencial da lei. A lei e o julgamento estão sempre ao serviço da verdade, da justiça e da virtude evangélica da caridade.
Outro aspeto da sinodalidade dos processos é o discernimento. Porque o sínodo não é apenas uma sondagem de opiniões, não é um inquérito, pelo que aquilo que cada um diz tem o mesmo valor. Não. O que se diz entra no discernimento. É preciso ter a capacidade de discernir. E o discernimento não é fácil. É um discernimento baseado no caminhar juntos e escutar, o que permite ler a situação matrimonial concreta à luz da Palavra de Deus e do Magistério da Igreja. Assim, a decisão dos juízes manifesta-se como um modo de entrar na realidade de um acontecimento vital, a fim de descobrir nele a existência ou não desse acontecimento irrevogável que é o consentimento válido sobre o qual o matrimónio se baseia. Só desta forma as leis relativas às formas individuais de nulidade matrimonial podem ser frutuosamente aplicadas, na medida em que são expressões da doutrina e disciplina da Igreja sobre o matrimónio. Aqui entra em ação a prudência da lei, no seu sentido clássico de recta ratio agibilium, ou seja, de uma virtude que julga segundo a razão, isto é, com retidão no âmbito prático. Voltando àquele exemplo: “O que quer? Condeno-o ou liberto-o?”.
O êxito deste caminho é a sentença, fruto de um cuidadoso discernimento que conduz a uma palavra de verdade autorizada sobre a experiência pessoal, destacando assim os caminhos que podem ser abertos a partir disto. Por conseguinte, o julgamento deve ser compreensível para as pessoas envolvidas: só assim se tornará um momento de especial significado no seu percurso humano e cristão.
Estimados Prelados Auditores, estas considerações, que quis apresentar à vossa atenção, mostram como a dimensão da sinodalidade torna possível evidenciar as caraterísticas essenciais do processo. Encorajo-vos, portanto, a continuar com fidelidade e renovada diligência o vosso ministério eclesial ao serviço da justiça, inseparável da verdade e, em definitivo, da salus animarum. Um trabalho que manifesta o rosto misericordioso da Igreja: um rosto materno que se inclina sobre cada fiel para o ajudar a esclarecer a verdade sobre si mesmo, levantando-o das suas derrotas e labutas, e convidando-o a viver em plenitude a beleza do Evangelho. Renovo a cada um a minha estima e gratidão. Peço ao Espírito Santo que acompanhe sempre a vossa atividade e abençoo-vos de coração. E não vos esqueçais de rezar. Que a oração vos acompanhe sempre. “Estou ocupado, tenho tantas coisas para fazer...”. A primeira coisa que deves fazer é rezar. Rezai para que o Senhor esteja próximo de vós. E também para conhecer o coração do Senhor: conhecemo-lo na oração. E os juízes rezem, e devem rezar, duas ou três vezes mais. Por favor, não vos esqueçais de rezar também por mim, é claro. Obrigado!
1 Cf. Bula Misericordiae vultus, 5: aas 107 [2015], 402.
2 Alocução à Rota Romana, 2 de outubro de 1944: aas 36 [1944], 281.
3 Cf. Jo 8, 32.