«Por favor, paremos este naufrágio de civilização!». Disse o Papa com força na manhã de domingo, em Lesbos, no coração do Mediterrâneo, «esta grande bacia hidrográfica, berço de tantas civilizações», que agora parece mais «um espelho de morte». «Não deixemos que o mare nostrum se transforme num desolador mare mortuum, que este lugar de encontros se transforme no palco de confrontos». O choque é, antes de mais, entre ideias, ideologias e realidade. O Papa reitera vigorosamente em Lesbos — no centro de identificação construído após o incêndio no campo de Moira que visitou em 2016 — que a realidade é superior à ideia e que, por conseguinte, o esforço a fazer é acolher a realidade, fazer as contas com ela e ter confiança que na realidade assim como é, na sua concretude, se pode e se deve trabalhar, fazendo-o juntos, a fim de melhorar as condições de vida do mundo, porque esta crise diz respeito ao mundo inteiro. E se algo, trabalhando em conjunto, está a começar a ser feito a nível mundial no que diz respeito às vacinas, e também às questões climáticas e ambientais, infelizmente temos de reconhecer que «tudo parece baldar-se terrivelmente no que diz respeito às migrações».
De facto, as ideias, desligadas e sobrepostas à realidade, acabam por enlouquecer e colidir frontalmente umas contra as outras: «Em várias sociedades — frisou Francisco — há quem esteja, de forma ideológica, a contrapor segurança e solidariedade, local e universal, tradição e abertura. Mais do que tomar partido pelas ideias, ajuda partir da realidade: parar, estender o olhar». Portanto, é uma questão de olhar, repetiu o Papa várias vezes nos seus discursos na Grécia.
É interessante notar que a palavra “ideia” vem da raiz “id” que na língua grega indica precisamente “ver”, mas, paradoxo perturbador, é precisamente por causa das ideias, ou melhor, do abuso excessivo que delas se faz, transformando-as em ideologias, que acabamos por já não ver a realidade. Com efeito, da mesma raiz vem “ídolo”, que é precisamente o que se vê e encobre a verdade subjacente, aquela essencial, como diria Saint-Exupèry, que é invisível aos olhos. A idolatria e a ideologia acabam inevitavelmente por coincidir. Se o problema reside na nossa capacidade de ver, a resposta não consiste em cegarmo-nos (é isto que faz um ídolo: deslumbra e anestesia) mas, pelo contrário, consiste em “dilatar”, em ver mais, melhor, em mudar o nosso olhar. Recomeçar a partir de um olhar novo, amplo e livre sobre a realidade, o olhar de criança. «Estou aqui — afirmou o Papa logo que chegou a Lesbos — para contemplar os vossos rostos, para ver-vos olhos nos olhos» e depois especificou que «se quisermos recomeçar, olhemos sobretudo os rostos das crianças. Tenhamos a coragem de nos envergonhar à vista delas, que são inocentes e constituem o futuro». Não é fácil olhar nos olhos, não é fácil “sustentar” o olhar, mas é precisamente isto que Francisco pede ao Ocidente: «Irmãs, irmãos... os vossos olhos pedem-nos para não vos virarmos as costas, não renegarmos a humanidade que nos irmana, para assumirmos as vossas histórias e não esquecermos os vossos dramas». Mas os destinatários deste clamor parecem distraídos, tentados a esquecer, e o Papa quis dizer isto precisamente na Grécia, que é «a memória da Europa», como a definiu, assim como o Mediterrâneo é «o mar de memórias» que não pode tornar-se «o mar do esquecimento».
Portanto, é necessário um olhar aberto e honesto, mas mais do que isso, diz o Papa, um «olhar espiritual». Era aquele que Paulo tinha quando chegou a Atenas e conheceu, com confiança, a realidade que encontrou na capital espiritual e cultural do seu tempo. Falando no sábado à tarde na igreja dedicada a São Dionísio (chamado o Areopagita precisamente porque se converteu à fé cristã depois de ouvir o famoso discurso no Areópago), o Papa disse com confiança e acolhimento: «Paulo acolhe o desejo de Deus escondido no coração daquelas pessoas e, com gentileza, quer comunicar-lhes o assombro da fé. O seu estilo não é impositivo, mas propositivo».
Sobre o assombro da fé o Papa voltou a falar esta manhã dirigindo-se aos jovens e falando de “thaumàzein”, a admiração que é considerada (por Platão e Aristóteles entre outros), como o início, «a centelha» da filosofia, disse o Papa. «Mas o espanto não constitui apenas o início da filosofia; é também o início da nossa fé […] o âmago da fé não é uma ideia, não é uma moral; o âmago da fé é uma realidade, uma realidade belíssima que não depende de nós e que nos deixa de boca aberta: somos filhos amados de Deus! Somos filhos amados». Não é de uma grande ideia que nasce o cristianismo, como afirma Bento xvi nas palavras de abertura da Deus Caritas est, mas de um encontro, algo real, concreto, e que põe em quadratura as nossas ideias, os nossos esquemas e julgamentos sobre a realidade. O assombro é o verdadeiro antídoto para a ideologia, porque alarga a visão e substitui a lógica ilusória da autossuficiência pela do dom e da gratuidade, a única forma para sair do naufrágio.
Andrea Monda