Recordação, paixão e conforto: estas três palavras guiaram a reflexão do Papa Francisco na manhã de 5 de novembro, na missa celebrada na policlínica “Gemelli” de Roma, no 60º aniversário da inauguração da Faculdade de Medicina e Cirurgia da Universidade católica do Sagrado Coração. Publicamos a seguir a homilia do Pontífice.
Enquanto comemoramos com gratidão o dom desta sede da Universidade católica, gostaria de compartilhar alguns pensamentos a propósito do seu nome. Ela é intitulada ao Sagrado Coração de Jesus, a quem é dedicado este dia, primeira sexta-feira do mês. Contemplando o Coração de Cristo, podemos deixar-nos guiar por três palavras: recordação, paixão e conforto.
Recordação. Re-cordar significa “retornar ao coração, retornar com o coração”. Re-cordar. Ao que nos faz retornar o Coração de Jesus? Àquilo que fez por nós: o Coração de Cristo mostra-nos Jesus que se oferece: é o compêndio da sua misericórdia. Olhando para Ele — como faz João no Evangelho (19, 31-37) — é natural fazer memória da sua bondade, que é gratuita, não se compra nem se vende, é incondicional, não depende das nossas obras, é soberana. E comove! Na pressa de hoje, entre mil corridas e contínuas preocupações, perdemos a capacidade de nos comovermos e de sentir compaixão, pois perdemos este regresso ao coração, ou seja, à memória, o retorno ao coração. Sem memória perdem-se as raízes, e sem raízes não se cresce. Far-nos-á bem alimentar a memória de quem nos amou, cuidou de nós, nos animou. Hoje gostaria de renovar o meu “obrigado” pelos cuidados e afeto que aqui recebi. Acho que, neste tempo de pandemia, nos faz bem recordar também os períodos de maior sofrimento: não para nos entristecer, mas para não esquecer, e para nos orientarmos nas escolhas, à luz de um passado muito recente.
Interrogo-me: como funciona a nossa memória? Simplificando, poderíamos dizer que nos lembramos de alguém ou de algo, quando toca o nosso coração, quando está ligado a um determinado afeto ou a uma falta de afeto. Pois bem, o Coração de Jesus cura a nossa memória porque a faz voltar ao afeto fundador. Enraíza-a na base mais sólida. Recorda-nos que, aconteça o que acontecer na nossa vida, somos amados. Sim, somos seres amados, filhos que o Pai ama sempre e em qualquer caso, irmãos pelos quais o Coração de Cristo palpita. Cada vez que perscrutamos aquele Coração, descobrimo-nos «arraigados e consolidados na caridade», como disse o Apóstolo Paulo na primeira leitura de hoje (Ef 3, 17).
Cultivemos esta memória, que se fortalece quando estamos face a face com o Senhor, especialmente quando nos deixamos olhar e amar por Ele em adoração. Mas também podemos cultivar entre nós a arte de recordar, valorizando os rostos que encontramos. Penso nos dias cansativos no hospital, na universidade, no trabalho. Corremos o risco de que tudo passe sem deixar rastos, ou que permaneçam apenas a fadiga e o cansaço. Faz-nos bem, à noite, rever os rostos que encontramos, os sorrisos que recebemos, as boas palavras. São memórias de amor e ajudam a nossa memória a reencontrar-se: que a nossa memória se reencontre a si mesma. Como estas memórias são importantes nos hospitais! Podem dar sentido ao dia de uma pessoa doente. Uma palavra fraterna, um sorriso, uma carícia no rosto: são memórias que curam por dentro, que fazem bem ao coração. Não esqueçamos a terapia da memória: ela faz muito bem!
A segunda palavra é paixão. Paixão! A primeira é memória, recordar; a segunda é paixão. O Coração de Cristo não é uma devoção piedosa para sentir um pouco de calor interior, não é um santinho meigo que suscita afeto, não, não é isso! É um Coração apaixonado — é suficiente ler o Evangelho — um Coração ferido de amor, dilacerado por nós na cruz. Ouvimos como o Evangelho fala dele: «Uma lança abriu-lhe o lado, e imediatamente saiu sangue e água» (Jo 19, 34). Trespassado, doa; morto, dá-nos vida. O Sagrado Coração é o ícone da paixão: indica-nos a ternura visceral de Deus, a sua paixão amorosa por nós e, ao mesmo tempo, encimado pela cruz e circundado de espinhos, mostra-nos quanto sofrimento custou a nossa salvação. Na ternura e na dor, aquele Coração revela, em síntese, qual é a paixão de Deus. Qual é? O homem, nós! E qual é o estilo de Deus? Proximidade, compaixão e ternura. Este é o estilo de Deus: proximidade, compaixão e ternura.
O que sugere isto? Que, se realmente quisermos amar a Deus, devemos apaixonar-nos pelo homem, por cada homem, especialmente por quem vive a condição em que o Coração de Jesus se manifestou, ou seja, a dor, o abandono, o descarte; sobretudo nesta cultura de descarte em que hoje vivemos. Quando servimos aqueles que sofrem, consolamos e rejubilamos o Coração de Cristo. Surpreende uma passagem do Evangelho. O evangelista João, precisamente no momento em que narra sobre o lado trespassado, do qual sai sangue e água, dá testemunho para que acreditemos (cf. v. 35). Ou seja, São João escreve que naquele momento ocorre o testemunho. Pois o Coração dilacerado de Deus é eloquente. Fala sem palavras, porque é misericórdia em estado puro, amor que é ferido e dá vida. É Deus, com a proximidade, a compaixão e a ternura. Quantas palavras dizemos sobre Deus, sem manifestar amor! Mas o amor fala por si só, não fala de si. Peçamos a graça de nos apaixonarmos pelo homem que sofre, de nos apaixonarmos pelo serviço, a fim de que a Igreja, antes de ter palavras para dizer, preserve um coração que palpita de amor. Antes de falar, que aprenda a conservar o coração no amor.
A terceira palavra é conforto. A primeira era recordação, a segunda paixão, a terceira é conforto. Ela indica uma força que não provém de nós, mas de quem está connosco. Jesus, o Deus-connosco, dá-nos esta força, o seu Coração infunde-nos coragem nas adversidades. Muitas incertezas nos assustam: neste tempo de pandemia, descobrimo-nos mais pequeninos, mais frágeis. Apesar de tantos progressos maravilhosos, como se vê também no campo médico: quantas doenças raras e desconhecidas! Quando encontro as pessoas nas audiências – especialmente crianças — e pergunto: “Estás doente?” — [elas respondem] “Tenho uma doença rara”. E quantas há hoje! Como é difícil acompanhar as patologias, as estruturas de tratamento, os cuidados de saúde, que sejam realmente como devem ser, para todos. Poderíamos desanimar. Por isso precisamos de conforto — a terceira palavra. O Coração de Jesus bate por nós, ritmando sempre estas palavras: “Coragem, coragem, não tenhas medo, Eu estou aqui!”. Coragem irmã, coragem irmão, não desanimes, o Senhor teu Deus é maior do que os teus males, toma-te pela mão e acaricia-te, está próximo de ti, é compassivo, é terno. Ele é o teu conforto!
Se olharmos para a realidade a partir da grandeza do seu Coração, a perspetiva muda, muda o nosso conhecimento da vida, pois como nos lembrou São Paulo, conhecemos «o amor de Cristo, que supera todo o conhecimento» (Ef 3, 19). Animemo-nos com esta certeza, com o conforto de Deus. E peçamos ao Sagrado Coração a graça de sermos, por nossa vez, capazes de consolar. É uma graça que deve ser pedida, enquanto nos comprometemos com coragem a abrir-nos, ajudando-nos uns aos outros, carregando os fardos uns dos outros. Isto é válido também para o futuro da saúde, especialmente da saúde “católica”: partilhar, apoiar-se, ir em frente juntos.
Que Jesus abra o coração de quem cuida dos doentes, à colaboração e à coesão. Ao teu Coração, Senhor, confiamos a nossa vocação de cuidar: faz com que sintamos querida cada pessoa que se aproxima de nós na necessidade. Amém!