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Nunca me passou pela cabeça demitir-me

 Nunca me passou  pela cabeça demitir-me  POR-036
07 setembro 2021

Francisco foi entrevistado por Carlos Herrera da Radio Cope. Pela primeira vez falou da sua cirurgia de julho e abordou também questões sobre o Afeganistão, China, eutanásia e reforma da Cúria.

Da operação ao cólon, realizada a 4 de julho na Policlínica Gemelli, e das suas atuais condições de saúde, até à crise no Afeganistão e à preocupação pela população. Depois o diálogo com a China, o ponto de vista sobre eutanásia e aborto, ambos símbolos daquela “cultura do descarte” desde sempre denunciados, o importante processo no Vaticano e, por fim, os desafios do seu pontificado como a reforma da Cúria e a luta contra a corrupção e a pedofilia. Pontificado que, depois de nove anos, contrariamente a presumidas indiscrições que circulam nos meios de comunicação italianos e argentinos, não se interromperá antes do previsto: “Nunca me passou pela cabeça demitir-me”. A entrevista que o Papa Francisco concedeu no último fim de semana de agosto à Radio Cope, emissora da Conferência episcopal espanhola, durou uma hora e meia. Foi a primeira entrevista após a operação da estenose diverticular, e a primeira a uma rádio espanhola.

A saúde após a operação
na Policlínica Gemelli

Em conversa com o jornalista Carlos Herrera, sob o olhar da imagem tão querida ao Pontífice de Nossa Senhora que desata os nós, conservada no salão da Casa Santa Marta, o Papa abordou todos os temas atuais e não evitou as questões pessoais. Começando pela mais simples, mas, neste tempo de recuperação pós-operatória, a questão mais importante: «Como está?». «Ainda estou vivo», respondeu Francisco com um sorriso. E diz que foi um enfermeiro do ambulatório médico da Santa Sé, um homem com mais de 30 anos de experiência que salvou a sua vida ao insistir que se submetesse a uma cirurgia: «Ele salvou a minha vida! Disse-me: “Deve fazer uma operação”. E isto, apesar da opinião contrária de alguns que sugeriam, ao contrário, um tratamento com antibióticos». A insistência do enfermeiro revelou-se providencial, uma vez que a operação relevou uma parte necrótica: agora, após a operação, revelou Francisco, «tenho 33 centímetros a menos de intestino». Contudo, isto não o impede de levar uma vida «totalmente normal». «Posso comer de tudo» e, tomando «os medicamentos apropriados», manter a agenda cheia: «Hoje, uma manhã cheia de audiências». Uma agenda que inclui também uma viagem à Eslováquia e à Hungria de 12 a 15 de setembro, a 34ª do seu pontificado.

«Renunciar?
Nunca pensei nisso»

Ainda a falar da própria saúde, o Papa nega categoricamente as especulações de alguns jornais italianos e argentinos sobre uma possível renúncia ao pontificado. Interpelado sobre isto, Francisco respondeu: «Nunca me passou pela cabeça... Não sei onde eles foram buscar a ideia de que eu me demitiria». Com uma ponta de ironia, o Papa também explicou que tomou conhecimento das notícias muito mais tarde: «Também me disseram que na semana passada estava na moda. Eva (Fernández, correspondente de Cope para a Itália e o Vaticano) disse-me... e eu respondi-lhe que não fazia ideia pois só leio um jornal aqui de manhã, o diário de Roma. Leio-o porque gosto da titulação, leio-o rapidamente, não me envolvo no jogo. Não vejo televisão. E recebo, sim, mais ou menos o resumo das notícias do dia, mas descobri muito mais tarde, alguns dias depois, que havia algo sobre a minha demissão. Sempre que um Papa está doente, há uma brisa ou um furacão de Conclave».

A crise no Afeganistão

Na entrevista foi dedicado amplo espaço à crise no Afeganistão, ferido pelos recentes ataques kamikaze e pela hemorragia de cidadãos após a tomada do poder pelos talibãs. «Uma situação difícil», observou o Papa Francisco, que não entrou em detalhes sobre os esforços que a Santa Sé está a fazer a nível diplomático para evitar represálias contra a população, mas elogiou o trabalho da Secretaria de Estado. «Estou certo de que está a ajudar ou pelo menos a oferecer ajuda», e definiu o cardeal secretário de Estado, Pietro Parolin, «o melhor diplomata que conheço»: «Um diplomata que acrescenta, não um daqueles que subtraem, que procura sempre, um homem de acordos».

O Papa depois citou a chanceler alemã Angela Merkel, «uma das grandes figuras da política mundial», no seu discurso de 20 de agosto em Moscovo: «É necessário pôr fim à política irresponsável de intervir a partir de fora e construir a democracia noutros países, ignorando as tradições do povo». «Lapidário... percebi um sentido de sabedoria respeitadora nas palavras desta mulher», disse Francisco. E interpelado a este propósito, definiu «lícita» a retirada dos Estados Unidos do Afeganistão, após vinte anos de ocupação, não obstante «o eco que ressoa em mim seja outra coisa», ou melhor, o facto de «deixar o povo afegão ao seu destino». Com efeito, para o Papa o nó a ser desatado é outro: «Como renunciar, como negociar uma saída». «Pelo que posso ver nem todas as eventualidades foram consideradas aqui, parece, não quero julgar, nem todas as eventualidades. Não sei se haverá ou não uma revisão, mas certamente houve muitos enganos, talvez por parte das novas autoridades. Digo engano ou muita ingenuidade, não entendo».

Diálogo com a China:
o caminho a seguir

Do Afeganistão, o olhar permanece sobre a Ásia, mas desloca-se à China e ao Acordo sobre a nomeação de bispos renovado por mais dois anos. «Há quem insista em não renovar o acordo que o Vaticano assinou com aquele país porque põe em perigo a sua autoridade moral», observou o jornalista. «A China não é fácil, mas estou convencido de que não devemos desistir do diálogo», respondeu o Papa. «Pode-se ser enganado no diálogo, pode-se cometer erros, tudo isso... mas é o caminho a seguir. É o caminho a seguir. O que até agora se obteve na China foi, pelo menos, o diálogo... algumas coisas concretas como a nomeação de novos bispos, lentamente... Mas estes são também passos que podem ser discutíveis assim como os resultados de um lado ou do outro».

A inspiração do cardeal Casaroli

Para o Papa, um ponto de referência e inspiração é o cardeal Agostino Casaroli, por muitos anos secretário de Estado durante o pontificado de João Paulo ii, e com João xxiii «o homem encarregado de construir pontes com a Europa Central». O Pontífice citou «um livro muito bonito», O Martírio da Paciência, no qual o cardeal relata as suas experiências nos países comunistas: «Foram pequenos passos dados um depois do outro, para construir pontes... Lentamente, lentamente, foi ganhando reservas de relações diplomáticas que acabaram por significar a nomeação de novos bispos e o cuidado do povo fiel de Deus. Hoje, de alguma forma, temos de seguir passo a passo esses caminhos de diálogo nas situações mais conflituosas». A experiência com o Islão, com o Grão Imame de al-Tayeb, tem sido muito positiva neste sentido: «Diálogo, sempre diálogo ou a disponibilidade para o diálogo».

Os desafios do pontificado

E o diálogo é uma das pedras angulares dos oito anos de pontificado que o Papa Francisco reviu durante a entrevista. Começando pela sua eleição a 13 de março de 2013, que foi totalmente inesperada («vim aqui com uma mala de fim de semana»), passando pelos vários desafios que enfrentou, sempre com o objetivo de implementar o que tinha sido concordado pelos cardeais nas reuniões pré-conclave, tudo resumido na Evangelii gaudium: «Penso que ainda há várias coisas a fazer, mas nada foi inventado por mim. Estou a obedecer ao que foi estabelecido a seu tempo».

«Pequenos ajustes»
na Cúria Romana

A reforma da Cúria Romana, novos progressos na transparência das finanças do Vaticano e a prevenção de casos de abusos no seio da Igreja são as três questões sobre as quais Jorge Mario Bergoglio está a trabalhar intensamente. Sobre a reforma da Cúria, o Papa garantiu que «está a ir passo a passo e bem» e revelou que este verão estava prestes a terminar a leitura e a assinatura da nova constituição apostólica «Praedicar Evangelium», cuja publicação foi, contudo, adiada «por causa da minha doença». Mas o documento, explicou o Pontífice, «não contará nada de novo em comparação com o que vemos agora», apenas alguma fusão de Dicastérios, como a Educação católica com o Pontifício Conselho para a cultura e o Dicastério para a nova evangelização que se unirá com Propaganda Fide. «Pequenos ajustes», explicou.

O processo no Vaticano

No entanto, a luta contra a corrupção nas finanças do Vaticano continua a ser uma questão importante. «Foram feitos progressos na consolidação da justiça no Estado do Vaticano», afirmou o Pontífice, e isto permitiu «que a justiça fosse mais independente, com meios técnicos, também com testemunhos registados, coisas técnicas atuais, a nomeação de novos juízes, novos procuradores...». A referência é também ao importante processo que teve início no passado dia 27 de julho no Vaticano pelos atos ilícitos praticados com os fundos da Secretaria de Estado, que vê entre os dez arguidos o ex-substituto da Secretaria de Estado, cardeal Angelo Becciu. Francisco, recordando que todo o caso começou com as denúncias de dois funcionários do Vaticano e que viram irregularidades no trabalho, reiterou que não tem «medo da transparência nem da verdade. Por vezes dói muito, mas a verdade é o que nos liberta». Quanto a Becciu, ao qual revogou prerrogativas e direitos como cardeal, explicou que o purpurado foi processado porque a lei do Vaticano assim o prevê: «Desejo ardentemente que ele seja inocente. Foi meu colaborador e ajudou-me muito. Tenho por ele uma certa estima como pessoa, por isso o meu desejo é que ele saia bem da situação. Mas é uma forma afetiva da presunção de inocência... Para além da presunção de inocência, desejo que ele saia bem. Agora cabe aos tribunais decidir».

Luta contra a pedofilia,
apelo aos governos
contra a pornografia infantil

O Papa também falou de justiça no que diz respeito ao flagelo da pedofilia. Questionado sobre isto, primeiro elogiou o cardeal Sean O’Malley, presidente da Comissão para a tutela dos menores, pela sua «coragem» e por todo o trabalho realizado contra este crime já quando era arcebispo de Boston, depois lançou um forte apelo internacional aos governos para agirem e reagirem contra a pornografia infantil, «um problema global e grave». «Por vezes pergunto-me como permitem alguns governos a produção de pornografia infantil. Não podem dizer que não sabem. Hoje em dia, com os serviços secretos, sabemos tudo. Um governo sabe quem no seu país produz pornografia pedófila. Para mim, esta é uma das coisas mais monstruosas que vi».

Eutanásia, um sinal
da «cultura do descarte»

Com igual vigor, o Papa abordou também a questão da eutanásia, à luz das recentes leis emanadas na Espanha. A legalização desta prática é um sinal da «cultura do descarte» que agora permeia as sociedades modernas: «O que é inútil é descartado. Os idosos são descartáveis: são um incómodo. Também os doentes terminais; as crianças indesejadas são enviadas para o remetente antes de nascer». É essa «cultura do descarte», denunciada desde o início do pontificado, que tem um grande impacto no «inverno demográfico» do Ocidente e que atinge particularmente países como a Itália, onde a idade média é de 47 anos. «A pirâmide inverteu-se... A cultura demográfica está em prejuízo porque olha para o lucro. Olha para o que está à frente... e por vezes usando compaixão! O que a Igreja pede é que se ajude as pessoas a morrer com dignidade. Ela sempre o fez», comentou Francisco, o qual não deixou de estigmatizar o aborto: «Face a uma vida humana, coloco-me duas questões: é lícito eliminar uma vida humana para resolver um problema? Será correto contratar um assassino para resolver um problema?».

A esperança de ir a Glasgow
para a Cop26

O Papa falou também de abusos em relação à criação, uma das suas preocupações mais profundas, amadurecida ao longo dos anos de pontificado. Francisco espera estar presente na Conferência das Nações Unidas sobre as mudanças climáticas (cop26) que terá lugar de 1 a 12 de novembro em Glasgow: «Em princípio, o programa prevê que eu vá. Tudo depende de como eu me sentir naquele momento. Mas, na verdade, o meu discurso já está em preparação, e o programa prevê que eu vá.

O motu proprio
«Tratitionis custodes»

O foco da entrevista deslocou-se para o motu proprio Traditionis custodes, que regula as missas em latim e que este verão suscitou alguma controvérsia nos âmbitos eclesiásticos mais conservadores. O Papa respondeu a uma pergunta sobre o assunto enumerando a cronologia que levou à assinatura do documento: «A história da Traditionis Custodes é longa. Quando Bento xvi tornou possível celebrar com o missal de João xxiii (anterior ao de Paulo vi, que é pós-conciliar) a quantos não se sentiam à vontade com a liturgia atual, pois tinham uma certa nostalgia... pareceu-me uma das mais belas e humanas ações pastorais de Bento xvi, que é um homem de humanidade requintada. E assim começou. Esta foi a razão». «A preocupação que mais sobressaía, reiterou o Papa, como consta no texto que acompanhava o motu proprio, era que foi feito para ajudar pastoralmente aqueles que tinham vivido uma experiência anterior, se transformasse numa ideologia. Por outras palavras, uma ação pastoral transformada numa ideologia. Por isso, tivemos de reagir com regras claras. Se lerdes bem a carta e o decreto, vereis que se trata simplesmente de uma reorganização construtiva, com cuidado pastoral e evitando excessos».

Recomendações para o Dicastério
para a Comunicação

Na entrevista à Cope, foi mencionada a visita de 24 de maio ao Dicastério para a Comunicação do Vaticano e as palavras de encorajamento mas também de provocação dirigidas aos funcionários dos meios de comunicação social do Vaticano. «Foi uma repreensão?» perguntou o jornalista. «A reação divertiu-me, explicou o Papa, eu disse duas coisas. Primeiro, uma pergunta: quantas pessoas leem L’Osservatore Romano? Eu não disse se é lido muito ou pouco. Uma pergunta. Penso que é legítimo perguntar, não acha? E a segunda questão, que era mais temática, (perguntei) quando, depois de ver todo o novo trabalho de união, o novo organigrama, a funcionalidade, falei da doença dos organigramas, que dá a uma realidade um valor mais funcional do que real. E digo: com toda esta funcionalidade, que é funcionar bem, não devemos cair no funcionalismo. O funcionalismo é o culto dos organigramas sem ter em conta a realidade. Parece que alguém não entendeu estas duas coisas que eu disse, ou talvez não tenha gostado, ou não sei o quê, e interpretou-as como uma repreensão. É uma coisa normal, é uma pergunta e uma advertência. Sim... Talvez algumas pessoas se tenham sentido atingidas, e .... Penso que o Dicastério é muito promissor, é o Dicastério com o maior orçamento da Cúria neste momento, é dirigido por um leigo — espero que em breve haja outros guiados por um leigo ou uma leiga — e está a descolar com novas reformas. L’Osservatore Romano, a que chamo “o jornal do partido”, fez grandes progressos e o esforço cultural que está a fazer é maravilhoso».

A família, o futebol, as lágrimas

No final da entrevista, foram abordadas outras questões eclesiais como, por exemplo, o caminho sinodal na Alemanha, para o qual o Papa recorda a sua carta de junho de 2019, bem como questões internacionais como a independência da Catalunha e as políticas migratórias, para as quais o Pontífice argentino reiterou a fórmula dos quatro verbos: «Acolher, proteger, promover, integrar». O Papa não evitou perguntas mais pessoais sobre temas como a sua relação com a família, em particular com a sua avó Rosa, o seu apoio à seleção de futebol San Lorenzo, o seu sentimento de ser «um pecador que procura fazer o bem». O Papa Francisco revelou que não é um homem de lágrimas fáceis, embora seja verdade que algumas situações lhe causam tristeza, e confessa que o que mais lhe faz falta dos tempos de Buenos Aires é «caminhar de uma paróquia para outra» ou os densos dias enevoados do outono argentino enquanto ouve a música do compositor argentino Astor Piazzolla. «Gostaria de caminhar pelas ruas, mas tenho de me conter porque não conseguiria percorrer dez metros».

Salvatore Cernuzio