Quando os olhos dos grandes
Não é exatamente fácil encontrar um lampejo de esperança em meio à versão brasileira da pandemia de Covid-19. Como escrevo, é apenas uma questão de tempo, no máximo algumas semanas de “business as usual”, para que meu país atinja o terrível número de meio milhão de mortes diretamente ligadas à propagação do Sars-CoV-2. Até agora, em cada 100.000 brasileiros 230 morreram de Covid-19, uma taxa mais alta do que a da Itália, da maioria dos países europeus e de quase todas as outras nações do mundo.
Como em todos os outros lugares, o vírus cresceu na desigualdade, na “nacionalização da indiferença”. Se você é negro ou mestiço em São Paulo, a maior cidade do Brasil, sua probabilidade de morrer por causa do novo coronavírus é respectivamente de 77% ou de 42% maior do que a dos habitantes brancos. Aumentos de risco similares se aplicam aos brasileiros que dirigem caminhões e ônibus, para as faxineiras sem as quais nossa classe média parece não conseguir viver, para os funcionários de supermercados e entregadores. E devido a esta doença aqui morreram mais de 2.000 crianças de 0 a 9 anos, a segunda maior taxa do mundo.
Dada nossa iníqua estrutura social, controlar a pandemia seria uma batalha difícil, mesmo que fizéssemos tudo certo, mas infelizmente nada tem estado mais longe da realidade. Os governos estaduais e municipais responderam erraticamente na melhor das hipóteses, enquanto o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro não perdeu a oportunidade para minar ativamente o distanciamento social, o uso de máscaras e até a compra de vacinas, comparando infamemente a pandemia com uma “gripe leve” e rindo enquanto imitava a dificuldade de respirar de um paciente de Covid-19.
A dimensão absoluta da tragédia nunca será suficientemente enfatizada, mas trata-se apenas de metade do quadro geral. A pandemia também trouxe à tona o que há de melhor em muitos brasileiros, e isso aconteceu particularmente do zero, quando milhares de voluntários em todas as esferas da vida perceberam que a ignorância, a incompetência e a desumanidade governamental precisavam ser enfrentadas com criatividade, compaixão e sólidos conhecimentos científicos.
Muitas vezes vistos simplesmente como obstáculos ao progresso econômico, centenas de grupos étnicos indígenas do Brasil foram atingidos de forma particularmente dura pelo primeiro surto da pandemia, e também foram alvo de grupos que semeavam desinformação sobre a segurança das vacinas e das chamadas curas milagrosas que nunca se materializaram. No entanto, eles estão conseguindo reagir.
Assim que as vacinas foram aprovadas pelas agências reguladoras nacionais, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), cujos membros englobam tribos em cada um dos 26 estados do país, deu início a uma campanha intitulada “Vacina Parente”! “Parente” é como os ameríndios brasileiros se referem hoje ao próximo, mesmo quando pertencem a grupos étnicos diferentes, e o slogan que chama a atenção mostra como a campanha está usando técnicas inteligentes de “inculturação” para divulgar a importância da vacinação, combinando-a com a medicina tradicional sempre que possível.
Na região do Alto Rio Negro, um canto relativamente isolado da bacia amazônica, trabalhadores indígenas e antropólogos estão imprimindo guias de vacinação curtos e eficazes em português e em três línguas indígenas diferentes — Nheengatu, Tukano e Baniwa. Eles também estão usando a rádio comunitária, que muitas vezes é o único meio de comunicação entre aldeias distantes. Ao mesmo tempo, a Apib está lutando pela vacinação prioritária para incluir as comunidades indígenas cujo direito a seus territórios tradicionais ainda não foi oficialmente reconhecido, e para aqueles que agora vivem nas cidades.
Na favela de Paraisópolis, com seus 100.000 habitantes e infra-estruturas precária no meio de São Paulo, onde a água da torneira é um luxo e as ambulâncias da cidade geralmente não estão disponíveis, líderes comunitários como Gilson da Cruz Rodrigues tiveram que encontrar maneiras de combater a pandemia e alimentar seu povo. Uma parte fundamental de sua resposta foi trabalhar com “presidentes de rua” informais — mais de 600 voluntários, 85% dos quais mulheres, que se tornaram responsáveis por 50 casas vizinhas.
Suas tarefas diárias incluíam o monitoramento de casos suspeitos de Covid-19 e a distribuição porta a porta de itens básicos de alimentos e suprimentos de higiene pessoal. Ao mesmo tempo, o comitê de Paraisópolis conseguiu contratar ambulâncias e trabalhadores de saúde por vários meses e encontrar empregos para mais de mil faxineiras e outros trabalhadores através de uma iniciativa chamada “Favela LinkedIn”. O modelo de “presidentes de rua” foi adotado por outras favelas em todo o Brasil.
Há 20 anos venho escrevendo sobre ciência e tecnologia, incluindo virologia e pesquisa biomédica. Como jornalista científico, estou fazendo o meu melhor para explicar o que a atual pandemia significa para a saúde humana e “cuidado com nossa casa comum”. Este é, é claro, meu trabalho, mas uma das experiências mais humildes e gratificantes nestes tempos difíceis foi testemunhar como jovens cientistas e até estudantes de graduação conseguiram unir forças, com a contribuição dos meios de comunicação social, para ajudar as pessoas em geral a navegar nas complexidades de uma nova e muitas vezes aterrorizante doença, para proteger a si mesmos, seus entes queridos e seus vizinhos, para dissipar preconceitos e medos infundados. Geralmente sem ganhar um centavo e muitas vezes gastando tempo valioso que deveriam estar investindo em suas vidas profissionais e pessoais, têm ajudado milhões de brasileiros a entender o que está em jogo.
A mídia, como temos testemunhado repetidamente nos últimos anos, nem sempre é uma força para o bem puro. A Instagram pode funcionar como um foco de futilidades, assim como o Twitter e o YouTube podem se tornar motores do ódio. Mas Twitter é também o lugar onde as pessoas podem ler análises didáticas e extensivas sobre como a transmissão Sars-CoV-2 está progredindo nas principais cidades brasileiras, por gentil concessão dos cientistas e analistas de dados da Rede Análise Covid-19 (@analise_covid19). É também o lugar para encontrar informações detalhadas e até mesmo links diários atualizados para a venda de máscaras que oferecem boa proteção contra o coronavírus, em perfis como Qual Máscara? (@qualmascara). E vídeos de biólogos, cientistas biomédicos e outros membros da Science Vlogs Brasil ajudaram as pessoas que não têm acesso aos meios de comunicação tradicionais a entender o real impacto da pandemia.
As feridas profundas causadas pela Covid-19 em nosso tecido social não vão desaparecer tão cedo. Mas é uma fonte de consolo profundo perceber que temos fontes inexploradas de grão, resiliência e esperança, e que muitos de nós nunca nos abstivemos da tarefa de curar, não importa o custo. Nas palavras de j.r.r. Tolkien, talvez o escritor católico que mais tem ajudado a moldar a imaginação humana no século xxi: «Tal é o curso dos atos que movem as rodas do mundo: muitas vezes são mãos pequenas que agem por necessidade, enquanto os olhos dos grandes estão voltados para outro lugar».
Reinaldo José Lopes,
Folha de São Paulo