Publicamos o prefácio escrito pelo cardeal arquivista e bibliotecário da Santa Igreja Romana ao livro do cardeal Seán Patrick O’Malley, arcebispo de Boston, «Cercasi amici e lavapiedi» (Milão, Paulinas, 2021, 256 páginas).
Se, num inquérito sobre a vida espiritual, perguntarmos com o que associamos as ideias de penitência e conversão, tenho a certeza de que a resposta da maioria seria: dor pelo mal cometido, remorso e lágrimas. A tradição está cheia de exemplos deste tipo, e todos sabemos — pelo menos por experiência pessoal — que esta atitude é de absoluta eficácia no caminho de transformação interior. Isto é também amplamente confirmado pela Sagrada Escritura, como aparece por exemplo num incisivo capítulo do profeta Joel, que lemos no início da Quaresma: «Voltai a mim de todo o vosso coração, com jejuns, lágrimas e gemidos de luto… Chorem os sacerdotes, servos do Senhor, entre o pórtico e o altar...» (2, 12.17). Ou como ressoa numa das bem-aventuranças do Evangelho: «Bem-aventurados vós que agora chorais» (Lucas 6, 21). Assim a importância do dom das lágrimas foi espontaneamente transmitida à espiritualidade cristã e o pranto tornou-se uma expressão daquela «tristeza segundo Deus» (2 Cor 7, 9) que — como esclareceu Orígenes — não coincide com o sofrimento voluntário, mas com «uma dor ininterrupta causada pela dor do pecado». Durante séculos a liturgia preservou orações como esta, com uma súplica implícita para receber o dom das lágrimas: «Ó Deus, concedei-nos derramar lágrimas em abundância sobre os males que cometemos, para que possamos merecer a graça da vossa consolação». As práticas de compunção foram (e ainda são) consideradas um teste valioso para examinar a alma, um caminho que nos leva à reconciliação com a vontade de Deus.
O filósofo Emil Cioran escreveu uma vez que o maior dom da religião só pode ser este: ensinar-nos a chorar, explicando: «São as lágrimas que nos podem tornar santos, depois de termos sido humanos». O que é verdade, mas não em absoluto. O defeito de uma certa representação da espiritualidade cristã consistiu em indicar a «tristeza segundo Deus» não como um meio, mas como um fim, praticamente perdendo de vista a experiência da graça divina, da misericórdia e da redenção.
No entanto, quando nos deparamos com a pregação do cardeal Seán O’Malley — da qual os textos recolhidos neste livro constituem um excelente exemplo — um elemento salta imediatamente aos olhos: a intenção é também facilitar a conversão, mas o instrumento escolhido para o efeito é o humor. Um facto que demonstra a amplitude, originalidade e perspicácia da sua sabedoria. Não se trata de humor banal e inócuo que é frequentemente repetido como um papagaio. Basta ler o primeiro dos esboços relatados pelo cardeal para se aperceber da inteligência utilizada. Numa zona rural, havia um bispo que celebrava a missa todas as manhãs na catedral. Ao sair da catedral, pouco antes de atravessar a praça, reparou sempre num homem chamado Santiago, deitado sobre um banco, sujo, maltrapilho, coberto de jornais velhos. O pobre homem, que cheirava a álcool e tinha olhos avermelhados, levantava-se sempre para saudar o bispo com grande afeto. Até que uma vez, ao sair para a praça, o bispo ficou surpreendido ao notar a ausência de Santiago. Passaram-se semanas, até que um dia viu Santiago a caminhar pela rua, e no início nem sequer o reconheceu. Barba e cabelo feitos, um fato limpo, sapatos novos, e uma Bíblia debaixo do braço. «Que te aconteceu?», perguntou o bispo. E Santiago: «Fui salvo!». O bispo felicitou-o e despediu-se dele. Passou mais um mês e o bispo, saindo da igreja, viu Santiago novamente num estado deplorável, de novo sentado lá no mesmo banco. «Santiago, o que te aconteceu?». «Monseñor, voltei à única verdadeira Igreja Mãe!».
É uma espécie de humor que diverte, sim, mas ao mesmo tempo deixa-nos atordoados porque escava túneis na trincheira das nossas certezas, põe em causa as ordens que costumávamos seguir como sonâmbulos, abala a nossa «boa» consciência, derruba os clichés aos quais muitas vezes reduzimos a experiência religiosa. As piadas do cardeal O’Malley não pretendem ser amenas. Talvez sejam, mas o objetivo é bem diferente: consiste em quebrar a nossa carapaça expondo-nos nus como somos, ajudando-nos a renunciar à tentação gnóstica ou maniqueísta de separar a ação da transcendência da nossa realidade concreta, com toda a sua rudeza, a sua ignomínia, os seus escombros. O pior de tudo seria viver num mundo de meras aparências, sem nunca permitir que a graça de Deus afetasse as nossas verdades.
Os textos de O’Malley, assim como as suas homilias, têm três características particulares que facilitam a sua identificação. A primeira já foi mencionada: o uso do humor como veículo de sabedoria, onde encontramos tanto a simplicidade e a humanidade típica do frade capuchinho como a capacidade crítica para desmantelar qualquer discurso de auto-justificação, que muitas vezes carateriza os crentes. Aqui o cardeal segue os passos de uma série de grandes autores norte-americanos, a começar pela escritora católica Flannery O’Connor. Ela costumava repetir que «quanto mais um escritor pretende revelar a dimensão sobrenatural, tanto mais terá de tornar o mundo natural de uma forma realista pois, se os leitores não aceitarem o seu mundo natural, certamente não aceitarão outro». Quanto a O’Malley, gostaria de acrescentar outro elemento: a tradição humorística dos chamados risus paschalis, aquele costume antigo em que, nos sermões de Páscoa, os fiéis se divertiam e riam com anedotas ou piadas, como que para difundir a alegria da Ressurreição por toda a parte. E de facto, na obra de Seán O’Malley sente-se um vento de Páscoa a soprar. É ele próprio que reafirma que a dinâmica pascal produz uma inversão total na forma como celebramos a fé, como expressa este breve diálogo místico:
Um homem perguntou: «Cometi muitos pecados. Se eu me arrepender, será que Deus me perdoará?» O místico respondeu: «Não. Arrependes-te se ele te perdoar».
Outra caraterística fundamental nos textos do atual arcebispo de Boston é o uso da primeira pessoa do singular, uma vez que nunca procede por abstrações, mas está profundamente enraizado na sabedoria cristã. O autor expõe-se em primeira pessoa, fala de si mesmo e da própria biografia espiritual, narra encontros feitos, reinterpreta acontecimentos, lê no tempo os sinais de Cristo. Como diz a Primeira Carta de João: «O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos olhos, o que temos contemplado e as nossas mãos têm apalpado no tocante ao Verbo da vida… nós vos anunciamos» (1, 1.3). Portanto, trata-se de um discurso existencialmente comprometido e que estimula o mesmo empenho por parte do leitor. Para O’Malley, as palavras não são um véu atrás do qual se esconder, mas um exercício direto, um diálogo na prática, o próprio sopro da vida. Temos sempre a sensação de estar sentados ao seu lado a conversar. O resultado é que, qualquer que seja o assunto, torna-se imediatamente relevante para qualquer pessoa. Neste volume, por exemplo, encontramos várias reflexões sobre o ministério episcopal e a missão da Igreja, mas é evidente que se trata de um livro concebido para todos.
A vontade do autor de falar por experiência direta também nos permite descobrir a singularidade da sua personalidade, permanecendo fascinados pela amplitude da sua experiência pastoral e pela beleza das relações humanas que soube tecer ao longo dos anos. Percebemos quão vasta é a sua cultura, a sua leitura; embora não se exiba de forma alguma, a sua erudição sobressai sempre. Conseguimos de alguma forma perceber a sua liberdade interior e, ao mesmo tempo, a vibrante sabedoria evangélica que ecoa nele.
Mas talvez a principal razão — a terceira caraterística das suas palavras — seja o seu amor à palavra de Deus. Como o próprio cardeal nos lembra, é através da Palavra que Deus se dirige a nós. E somos chamados a viver perscrutando continuamente as Escrituras a fim de procurar nelas a voz e o rosto de Deus (João 5, 37-39). Precisamente isto, o estudo da Palavra de Deus, é o primum officium, a primeira tarefa que devemos assumir. É a partir da Palavra que tudo começa. A Palavra é a fonte inesgotável do conhecimento de Cristo. E é por isso que o cardeal O’Malley especifica imediatamente que devemos «por-nos de joelhos para perceber a Palavra de Deus», e que a nossa deve ser uma «teologia de joelhos». Penso que este é o segredo que o torna um dos mestres da nossa época.
E quem ler este livro não poderá deixar de concordar!
José Tolentino de Mendonça