· Cidade do Vaticano ·

A casa de acolhimento do Sermig em São Paulo

Feridas, cicatrizes, dignidade
e autoestima

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27 abril 2021

De Arsenal militar para “Arsenal da Paz”: a transformação de um lugar simbólico de Turim, ligado à história da cidade desde a primeira guerra mundial, teve lugar em 1983, em paralelo com outra mudança, a do Serviço missionário juvenil (Sermig) que, a partir de uma realidade dedicada aos pobres, aos jovens e a projetos de ajuda a missionários do mundo inteiro, se transformou na sede do antigo Arsenal como “lar” para quem não tem uma casa: o espírito que anima a associação não é de uma estrutura de acolhimento que hospeda, mas de uma família que acolhe. Uma família que, ao longo do tempo, se torna cada vez maior: muitas mulheres, sozinhas ou com crianças, refugiados políticos, pessoas desabrigadas batem às portas da casa, porque ali a ninguém é negado o direito a um teto e a um abraço.

Os hóspedes do lar, aproximadamente trezentos, podem contar com um centro médico interno, disponível também para as famílias do bairro em situações de fragilidade económica, dado que o acolhimento não se destina unicamente aos desabrigados, mas também acompanha quantos se encontram em dificuldade, talvez o nosso vizinho de casa, enfrentando a vida de todos os dias. As crianças do bairro, em condições difíceis, são assistidas nas atividades pós-escolares e os jovens participam em percursos de voluntariado.

Ao longo dos anos, o complexo tornou-se inclusive sede da Fraternidade da Esperança: assim começaram novas viagens, seguindo a rota rumo ao Brasil em 1995, e à Jordânia em 2003. Na obra destas missões, a dimensão da descoberta, da aventura e do conhecimento traduz-se no acolhimento do próximo: quer ele tenha o rosto de uma criança com deficiência, cristã ou muçulmana, não importa, como na Jordânia, quer o de jovens desabrigados, como no Brasil. «A nossa presença aqui nasce do encontro com um bispo santo, Dom Luciano Mendes de Almeida: é uma figura em que se cruzam o espírito de Francisco de Assis, a mente de Platão e a habilidade manual de Leonardo. Foi ele que nos acompanhou à descoberta de uma megalópole como São Paulo, que nos encorajou a viver a missão até ao fundo», recorda Ernesto Olivero, fundador do Sermig em 1964 com a sua esposa Maria. Hoje, o Arsenal da Esperança garante comida e moradia a milhares de pessoas: conhecemos os seus nomes e rostos. Têm cicatrizes para curar, feridas para ligar, vidas para animar».

Todos os dias, no Arsenal da Paz de São Paulo, um dos maiores lares de acolhimento de toda a América Latina, são recebidas 1.200 pessoas: são os moradores de rua, os marginalizados, os últimos, jovens e adultos desabrigados, sem família, desempregados, e muitas vezes com problemas de álcool e droga. Aqui encontram uma cama limpa, uma refeição de qualidade, as necessidades de higiene pessoal e assistência social e de enfermagem. Encontram ânimo para dar mais um passo, seguindo cursos de alfabetização e formação profissional, participando em grupos de autoajuda para alcoólatras e toxicodependentes, com oportunidades que nunca tiveram: com efeito, têm à disposição uma biblioteca, um centro desportivo, campos e um bazar. O objetivo é um só: restituir dignidade, amor-próprio e autonomia. Uma casa aberta 24 horas por dia que, em quase 25 anos de trabalho ininterrupto, abraçou 65.000 almas, tirando-as da rua e do desespero.

Uma missão nascida sob o sinal da hospitalidade, voltando às origens deste lugar. Com efeito, neste mesmo Arsenal da Esperança, no final do século xix, quando ao litoral americano chegavam os transatlânticos de migrantes em busca de fortuna no Novo Continente, milhões de pessoas foram acolhidas: após a segunda guerra mundial, assim que chegaram da Europa, mais de um milhão só de italianos passaram o tempo de quarentena na Hospedaria dos Imigrantes. As paredes do lar, testemunhas do sofrimento e de esperança, alargaram-se ao longo dos anos, e as suas bases fortaleceram-se naquele recanto do mundo. Onde, no século passado, muitos compatriotas foram em busca de uma vida melhor, hoje um grupo de missionários italianos traz esperança e alívio ao sofrimento do nosso tempo. Uma atenção que não parou nem sequer nestes meses de pandemia, durante os quais o Arsenal nunca fechou as portas. Mil pessoas conviveram durante os 96 dias de quarentena: no primeiro confinamento, esta foi a maior casa de quarentena do Brasil.

Foi necessário reinventar um pouco tudo, para se adaptar aos ritmos impostos pelas novas condições e habituar centenas de homens — acostumados com uma existência itinerante — a instalar-se num lugar, cuidando da higiene pessoal e de muitos outros assuntos que agora são de importância fundamental. Para ter uma ideia do enorme serviço prestado, durante a quarentena foram preparadas e servidas cerca de 200.000 refeições, com a ajuda da Igreja local, com a qual o Arsenal colabora constantemente. Além disso, há alguns dias os hóspedes do lar tiveram acesso à vacina contra o coronavírus: fruto da colaboração com as Assessorias de Saúde e Assistência Social do Município de São Paulo, alcançado depois de uma maratona de mais de um ano, durante a qual o Arsenal se comprometeu muito no combate à pandemia num ambiente tão complexo, também graças à ajuda prestada pela Igreja italiana.

«O Arsenal de São Paulo foi sempre um lar de esperança: durante décadas acolheu milhões de migrantes, os últimos entre os últimos. Para que os nossos hóspedes não sejam só hóspedes, procuramos ajudá-los a levantar o olhar, a redescobrir a dignidade que trazem dentro de si, a acreditar na beleza da vida. Também nestes meses é necessário alimentar a confiança e é comovedor o modo como todos colaboram», narra Simone Bernardi, da Fraternidade da Esperança do Sermig, sacerdote missionário no Brasil. Cruzam-se muitas histórias: a de Roberto, 40 anos, é uma história de rua e de resgate, um passado de drogas, que consome e prejudica. No entanto, quando se desce ao abismo, pode ter lugar o encontro a partir do qual começa o renascimento. Para ele, a quarentena não foi uma prisão, mas a saída do túnel. Nestes dias acompanha Luiz, um voluntário apaixonado pela fotografia, que decidiu permanecer no Arsenal da Esperança durante todo o período de quarentena, sem jamais sair, no respeito das regras: quis permanecer para testemunhar ao mundo a realidade de um pequeno mundo de acolhimento.

Silvia Camisasca