Aquela necessidade
Em 2003, o cineasta português Manoel de Oliveira, com mais de noventa anos, realizou um filme falado. Num dia de nevoeiro, uma professora universitária de história e a sua filha de quase oito anos embarcam de Lisboa para empreender numa viagem marítima que as levará à Índia, onde está o marido da mulher e pai da menina. Durante a viagem, o navio faz escala em várias cidades: Marselha, Nápoles, Pompeia, Atenas, Istambul, Cairo.
Graças às perguntas curiosas da menina, cada passeio fora do navio torna-se uma oportunidade para descobrir episódios mais ou menos conhecidos na história das civilizações egípcia, grega, romana e árabe, até às viagens geográficas de exploração dos primórdios da era moderna. Um percurso que descreve a grandeza da civilização, mas que também se detém nas suas muitas contradições trágicas: da escravidão às guerras, do colonialismo à intolerância. Além disso, o filme propõe uma reflexão sobre o papel da língua, ou melhor, das línguas, como instrumentos capazes de garantir a comunicação e a compreensão, para além das fronteiras políticas. Pode acontecer, então, que o capitão do navio, de origem americana, uma mulher de negócios francesa, uma ex-modelo italiana e uma atriz e cantora grega se sentem à mesma mesa, falem cada qual a própria língua e, no entanto, se entendam perfeitamente. Irá um ataque terrorista pôr fim a este idílio? Será que a violência aniquilará a beleza e a esperança? Esta é a pergunta, sem resposta, com que o filme se conclui.
Ao ler Uma gramática simples do humano, o livro do cardeal José Tolentino de Mendonça, arquivista e bibliotecário da Santa Igreja Romana, tive a impressão de ter novamente diante dos meus olhos cenas da obra de Oliveira. Com efeito, como o seu compatriota, Tolentino acompanha-nos num itinerário entre as palavras e as coisas que definem o que somos ou o que devemos ser: do “
A amizade, afirma Tolentino, é um bem inestimável, talvez superior ao amor, porque se baseia na completa igualdade, dom, aceitação e respeito pela autonomia. A amizade é capaz de superar distâncias de espaço e tempo: podemos ser amigos mesmo que estejamos a milhares de quilómetros, mesmo que não nos vejamos regularmente, e voltar a ser amigos depois de anos sem nos vermos. Os amigos conhecem as nossas aspirações, as nossas alegrias e acima de tudo as nossas dificuldades, ou seja, são testemunhas da nossa existência. Contudo, eles aceitam que em nós existam áreas sombrias, que exista um espaço escondido e inacessível. Ser amigo implica saber ouvir e estar disposto à compaixão, aceitar uma parte da dor do próximo, sem nunca se arvorar em juiz do sofrimento e da fragilidade do outro. Por esta razão, Tolentino lembra-nos que a amizade é um exercício tão difícil e ao mesmo tempo tão indispensável para tornar a solidão humana menos dolorosa.
Um exercício tanto mais necessário hoje, quando demasiadas vezes nos sentimos privados de referências e certezas ao enfrentar o presente. O vocabulário desenvolvido por Tolentino sugere que devemos aprender a aceitar as nossas ansiedades e dúvidas, interpretando-as não como limitações, mas como elementos constitutivos da condição humana. Somos seres humanos precisamente porque cultivamos a inquietação e a dúvida, porque estamos perpetuamente à procura de algo que pensamos que nos irá completar. Seria oportuno, continua Tolentino, recuperar o valor da infância, entendida não tanto como uma determinada fase da existência, da qual sentimos falta, mas como uma forma de viver, caraterizada por um olhar aberto e livre sobre o mundo, semelhante ao da pequena protagonista de Um filme falado, que tem a coragem de fazer perguntas, sem se envergonhar da sua simplicidade. Voltar a ser criança significa construir momentos de tranquilidade que nos permitem admirar-nos de novo perante a realidade: não é verdade que da maravilha nasce o pensamento, como diziam os antigos? Usando uma bonita imagem, Tolentino escreve que precisamos de sombra, para nos retemperarmos das fadigas da vida quotidiana, para nos libertarmos pelo menos durante algum tempo da luz ofuscante do sol.
Quando chegardes à última página deste livro, parecer-vos-á que o autor quis entregar-nos um léxico precioso e delicado para as nossas sociedades infelizes.
Giovanni Cerro