· Cidade do Vaticano ·

A Biblioteca e o Arquivo apostólicos — história, objetivos e balanço de missão: como funcionam as estruturas ao serviço do ministério do Papa

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13 abril 2021

Na Biblioteca são conservados 80.000 volumes manuscritos e mais de 1.600.000 livros impressos; milhões de documentos e pergaminhos são recolhidos em mais de 600 coleções e preservados em 83 km de prateleiras no Arquivo: as duas instituições “apostólicas” do Vaticano mais diretamente ligadas à preservação e transmissão da memória histórica da Igreja têm um património bibliográfico e documental sem igual no mundo.

O nascimento da Biblioteca deve-se ao Papa Nicolau v (1447-1455), que a dotou de numerosos códices e lhe destinou uma sede no Vaticano; fez o mesmo com o Arquivo Paulo v (1605-1621) após um século e meio, recolhendo num único local coleções de arquivo anteriormente distribuídas em vários gabinetes. Mas, na realidade, ambas foram “refundações”: com efeito, as suas origens remotas podem ser rastreadas até ao Scrinium da Igreja romana, que já nos primeiros séculos incluía as funções de biblioteca e arquivo dos Papas.

Estruturada em departamentos (Manuscritos, Livros impressos e Gabinete numismático), escritórios e serviços (incluindo o Laboratório de Restauro, o Laboratório fotográfico e a Escola de Biblioteconomia do Vaticano), a Biblioteca possui uma coleção de livros preciosa e extremamente rica. Mas possui também arquivos inteiros, tanto medievais como modernos, mais de 150.000 gravuras, 300.000 moedas e medalhas, mais de 200.000 fotografias, milhares de desenhos e matrizes, centenas de objetos de arte. Várias figuras e profissionais são empregados no trabalho: desde os scriptores, que são responsáveis pela pesquisa científica e pelas atividades culturais, até aos oficiais de tarefas específicas, tais como catalogação, restauração e informatização. Fiel à tarefa de recolher e preservar o seu património a fim de o tornar acessível ao público, há pelo menos uma década que a Biblioteca está empenhada num processo de digitalização que permite a utilização online de parte do material sob a sua responsabilidade: atualmente, 20% dos manuscritos foram reproduzidos e disponibilizados e espera-se concluir este projeto nos próximos trinta anos.

Aberto à livre consulta de estudiosos em 1881 por Leão xiii, o Arquivo mantém o título de “secreto” — denominação assumida desde meados do século xvii — até há um ano e meio, quando o Papa Francisco restaurou a sua qualificação original de “apostólico”, que «destaca — lê-se no motu proprio de 22 de outubro de 2019 — a estreita ligação da Sé romana com o Arquivo, instrumento indispensável do ministério petrino, e ao mesmo tempo sublinha a sua imediata dependência do Romano Pontífice». Visando a proteção e a valorização do património documental   —   que inclui, entre outros, o arquivo histórico dos escritórios da Cúria e mais de 75 representações diplomáticas da Santa Sé, e o arquivo completo dos dois últimos conselhos ecuménicos — desenvolve a sua atividade essencialmente em quatro ramos: publicações, conservação e restauro, aquisições digitais, projetos de colaboração com organizações e instituições. Emprega cerca de sessenta pessoas, incluindo arquivistas, escritores, assistentes, técnicos especializados e secretários.

À frente de ambas as instituições — governadas por um prefeito — está o arquivista e bibliotecário da Santa Igreja Romana, que coordena as suas atividades e as representa. A sua sede histórica é no Cortile del Belvedere, no interior dos Muros do Vaticano.

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Cardeal José Tolentino de Mendonça

Antídotos contra a amnésia


Um silêncio que é memória, um tesouro de conhecimento, um anseio de infinito. Eis o que se respira na Biblioteca Apostólica do Vaticano e no Arquivo Apostólico do Vaticano, instituições que hoje olham para o futuro, estão abertas à tecnologia, preservando e respeitando ao mesmo tempo testemunhos antigos da tradição da Igreja. Na Biblioteca, por exemplo, «a catolicidade — explica o cardeal José Tolentino de Mendonça, arquivista e bibliotecário da Santa Igreja Romana — não é uma abstração» porque é «um abraçar tudo o que é humano». Remonta a 1600, com Paulo v, a separação entre a Biblioteca, «uma instituição de conservação e pesquisa», e o Arquivo, que realiza uma atividade de «caridade intelectual» porque partilha o seu património com estudiosos de todo o mundo.

Qual é a contribuição específica que a Biblioteca e o Arquivo ofereceram ao longo dos séculos e ainda oferecem à missão da Santa Sé e do sucessor de Pedro?

Começo com uma imagem que me impressionou, acompanhando muitas vezes ao longo dos anos estudiosos e visitantes através da Biblioteca e Arquivo apostólicos. Quando entram nestes espaços e contemplam a imensidão e qualidade do património aqui preservado, ficam atónitos. Eu diria que o seu silêncio não é apenas silêncio. É algo semelhante àquele tremor que Blaise Pascal disse ter sido causado pelo pensamento do infinito. Para compreender a vocação e missão destas instituições seculares, talvez o mais correto a fazer seja voltar à centralidade da dimensão da memória na vida da Igreja. A Igreja baseia verdadeiramente a sua existência na memória histórica e sacramental dos gestos e palavras de Jesus. A Igreja é ainda mais vital quando está consciente da memória viva que palpita no seu interior e assegura a sua continuidade. Uma biblioteca e um arquivo são antídotos contra a amnésia. Uma das missões fundamentais da Biblioteca Apostólica, por exemplo, é preservar alguns dos mais antigos testemunhos da tradição manuscrita das Escrituras Sagradas. Só isto seria suficiente para a considerar o coração da Igreja. Mas, como o Papa Francisco nos recordou, na sua Biblioteca correm «dois grandes rios, a palavra de Deus e a palavra dos homens». De facto, aqui tocamos de perto o que significa catolicidade. Aqui a catolicidade não é uma abstração. A catolicidade foi e é vivida pelos sucessores de Pedro como um abraçar tudo o que é humano, valorizando todas as culturas e formas de expressão. Foi assim que este monumental depósito do pensamento humano se construiu, estendendo-se ao longo de séculos, desde a antiguidade até ao presente. É a mesma universalidade que encontramos refletida nos documentos do Arquivo apostólico, que são uma espécie de extensão do livro dos Atos dos apóstolos, pois narram a aventura do cristianismo ao longo do tempo e como o Espírito Santo conduz a Igreja. Deste modo, é evidente, como disse Bento xvi, que o Arquivo e a Biblioteca apostólicos são «parte integrante dos instrumentos necessários para a realização do Ministério petrino» e constituem instrumentos irrenunciáveis para o governo da Igreja.

Também a atividade da Biblioteca e do Arquivo hoje é fortemente marcada pela crise global da saúde, que atingiu especialmente as relações com os estudiosos e a comunidade científica. Como enfrentais a emergência e que medidas foram tomadas para garantir a segurança sem pôr em risco o trabalho de pesquisa?

O Arquivo e a Biblioteca apostólicos fizeram o possível para mitigar o impacto desta grave crise sanitária. Na verdade, nunca fechámos, mesmo se durante alguns meses não pudemos receber os estudiosos em presença. Os nossos funcionários continuaram a trabalhar em smart working e o governo, assistido por uma pequena equipa, continuou a operar permanentemente nas duas sedes. Os pedidos de todos aqueles que não puderam vir fisicamente ao Cortile del Belvedere (sede histórica da Biblioteca e do Arquivo), escreveram-nos para obter informações ou cópias de materiais e foram atendidos. E, logo que foi possível, fomos também entre um dos primeiros a reabrir os espaços aos estudiosos, graças a uma redução do período tradicional de encerramento no verão. Claro que, a fim de cumprir escrupulosamente todas as regras de proteção da saúde, agora podemos acomodar um número menor de pesquisadores. Em qualquer caso, o esforço que fazemos tem sido amplamente reconhecido por estudiosos, que elogiam o serviço altamente qualificado que a Santa Sé oferece à comunidade científica internacional.

As inovações tecnológicas representam um desafio que requer uma atualização contínua para acompanhar os tempos. Que tipo de futuro pode ser previsto para as duas instituições que nasceram para guardar e preservar os testemunhos do passado?

Como diz frequentemente o Papa Francisco, não estamos apenas a viver uma época de mudança, mas uma mudança epocal. É verdade: estamos dentro de uma grande mudança epocal que certamente terá um impacto irreversível no mundo das bibliotecas e arquivos. Uma coisa positiva, pelo menos, já sabemos: as sociedades do futuro irão valorizar cada vez mais o conhecimento. Isto significa que o património que representamos é uma componente obrigatória do futuro. No entanto, de momento, muitas questões permanecem em aberto, tanto no respeitante à preservação dos novos modos de comunicação humana como às formas de construção do próprio conhecimento. É ilusório acreditar que o salto do analógico para o digital possa ser feito com um clique. Requer um longo e colaborativo caminho. Mas manter-se a par dos tempos não é uma opção: é um dever. De facto, a Santa Sé não parou. O início da construção da Biblioteca virtual já conta há mais de uma década, e continua a progredir. Temos atualmente, por assim dizer, duas bibliotecas: uma física e uma virtual. Esta última contém, em regime de open access, cerca de 20% dos manuscritos que a nossa biblioteca física possui. E a ideia é continuar. Tudo isto representa claramente um enorme esforço, que revela o amor da Santa Sé pela cultura como instrumento para o desenvolvimento humano e a paz. Mas precisamos do apoio de todos os cristãos e de pessoas de boa vontade conscientes da importância da cultura. O mesmo se aplica ao Arquivo apostólico, no qual se continuam a realizar importantes projetos de digitalização, tanto de documentos como de inventários. Estamos a responder com responsabilidade aos desafios do futuro.

Benedetta Capelli