· Cidade do Vaticano ·

Abertos ao assombro prontos a ir contracorrente

 Abertos ao assombro prontos a ir contracorrente  POR-014
08 abril 2021

«As mulheres esperavam encontrar o cadáver para o ungir; em vez disso, encontraram um túmulo vazio. Foram chorar um morto; em vez disso, escutaram um anúncio de vida». O início da homilia do Papa durante a vigília pascal coloca-nos diante da constatação de que na vida existe uma excesso, um “acréscimo” que nos surpreende sempre, se permanecermos atentos, se estivermos, para o dizer de modo mais exato, vigilantes.

Vigilância, vigilância: se assumíssemos esta postura perante a manifestação diária do “espetáculo” da vida, então compreenderíamos que Borges tinha razão quando escrevia, no conto A espera, que: «Não há um dia, nem sequer na prisão ou no hospital, que não traga uma surpresa, que não seja, em contraluz, uma rede de surpresas mínimas». Toda a homilia pronunciada pelo Santo Padre na celebração da noite de Páscoa é um convite a deixar-se surpreender pelo amor criativo de Deus que sempre «abre novos caminhos onde te parece que não existem, impele-te a ir contracorrente relativamente a nostalgias e ao “já visto”. Mesmo que tudo te pareça perdido, por favor abre-te maravilhado à sua novidade: surpreender-te-á».

Nos pensamentos das mulheres, Jesus é um cadáver para ungir, um amigo morto para recordar, mas Deus responde com a vitória da vida sobre a morte, com o anúncio da notícia mais boa, bela e verdadeira que se possa imaginar. A verdade é, como o Papa Francisco diz há oito anos e repetiu na homilia: «Ele sempre nos precede, na cruz do sofrimento, da desolação e da morte, bem como na glória de uma vida que ressurge, de uma história que muda, de uma esperança que renasce. E, nestes meses sombrios de pandemia, ouçamos o Senhor ressuscitado que nos convida a recomeçar, a nunca perder a esperança». Jesus Cristo é sempre o primeiro, diz o Papa, Ele precede-nos sempre; e quando chegamos, Ele já está à nossa espera. É o oposto daquilo que os homens muitas vezes acabam por fazer: lutar para se sobressair e depois não esperar pelos outros que ficam para trás, mas esmagá-los, explorá-los ou descartá-los por sede de domínio. Ao contrário, Jesus é companheiro de vereda, caminha contigo e quando o seu ritmo é mais longo e te ultrapassa, ele detém-se e espera por ti, está pronto a apostar em ti, ainda que tenhas falhado na primeira tentativa, «caminha contigo todos os dias, na situação que estás a viver, na provação que estás a atravessar, nos sonhos que trazes dentro de ti». Talvez quando pensas e te deixas levar pelas tuas elucubrações, Ele olha para ti um pouco admirado, com amor (“O homem pensa, Deus ri”, reza um antigo ditado judaico) porque sabe, e diz-te, que “a realidade supera sempre a ideia”, mas está sempre pronto a encorajar-te, a dizer-te para não temeres, a manter este espírito de criança, sempre aberto à admiração. Uma poetisa americana, Mary Oliver, intuiu que o segredo da vida está encerrado neste sentido de vigilância e admiração, e no seu poema Instructions for Living a Life recomenda três atitudes: «Presta atenção / Surpreende-te / Narra-o». Foi isto que aconteceu diante do túmulo com as mulheres que caminhavam carregadas com os seus pensamentos de morte: são arrebatadas pela admiração e contam imediatamente aquela experiência extraordinária. E assim abrem “novos caminhos”, vão contracorrente, tal como farão os discípulos de Emaús, ao regressarem apressadamente a Jerusalém, tal como os Magos fizeram no início do Evangelho, voltando para a sua terra “por outro caminho”. Se é verdade que as sendas do Senhor não são as nossas, assim deve ser para o cristão, no que diz respeito às veredas do mundo, que são as da resignação, do “arrependimento” e do “já visto”, aquelas que, em busca de um álibi, pensam que o mundo não muda e nunca poderá mudar. Não deve ser assim para o cristão que abre o seu coração com admiração ao anúncio da Páscoa e por isso é impelido quase naturalmente para ir contracorrente.

Então, não surpreende que na manhã seguinte, à da homilia da vigília pascal, o Papa Francisco tenha pronunciado, na mensagem Urbi et Orbi, as palavras que chamaram a atenção do mundo inteiro para o escândalo de uma sociedade que, no meio da pandemia que destrói vidas humanas e economias de países inteiros, em vez de se comprometer na partilha das vacinas, continua a gastar enormes somas de dinheiro para o incremento dos arsenais militares. Não, isto não nos pode surpreender!

Andrea Monda