· Cidade do Vaticano ·

Entre os dois rios

 Entre os dois rios   POR-010
09 março 2021

AMesopotâmia saúda o Papa Francisco. Os cartazes que enchem as grandes avenidas desertas de Bagdad, cidade esvaziada pelo confinamento, dizem exatamente assim, usando a mesma palavra, “Mesopotâmia”. É por isso que vir aqui, ao Iraque, é uma visita que faz tremer, faz vir arrepios da profundidade da história. Tudo nasceu aqui, na terra “no meio dos rios”. Assim, quando o carro que nos leva do palácio presidencial para a igreja de Nossa Senhora da Salvação (nós do séquito papal estamos divididos em muitos carros, blindados, por razões de segurança) atravessa a ponte sobre o rio Tigre, a emoção torna-se ainda mais forte. No palácio presidencial o primeiro ato desta 33ª viagem do Papa Francisco acaba de ter lugar, a primeira viagem de um Papa à terra de Abraão, mas é o segundo ato que provoca mais intensamente as emoções e a imaginação, não só pela alegria, evidente no rosto do Papa, de ser acolhido por uma multidão festiva, diligentemente distanciada, mas calorosa, feliz por celebrar a chegada da pessoa mais esperada.

Além das pessoas, também os lugares são muito eloquentes. O sumptuoso palácio do presidente, o seu discurso bonito, orgulhoso e solene. A igreja, situada num cruzamento de pequenas ruas (com os militares a vigiarem sobre os tetos dos edifícios), é mais rica em vida e história, mesmo se recente. A 30 de outubro de 2010, durante a missa dominical nesta igreja, 48 pessoas foram massacradas por terroristas, crianças e adultos, homens e mulheres, todos cristãos, incluindo dois jovens sacerdotes, pelo que é impressionante (mas explicável) ver uma igreja rodeada por um muro com arame arame farpado. Ao longo da nave central, coberta com um tapete vermelho para a ocasião, encontra-se uma larga faixa de mármore vermelho que começa na grande porta da igreja e “inunda” o adro de frente: é o sangue dos 48 mártires. Em direção oposta a este “rio de sangue” o Papa Francisco caminhou na sexta-feira à tarde, entrando na igreja com o aspersório na mão, aspergindo o local e a assembleia com outro “rio” de água benta.

E aqui há outra emoção de profundidade, porque a memória dá um salto no tempo de 2600 anos: também nestas terras, na região da antiga Babilónia, viveu o grande profeta Ezequiel, um sacerdote deportado em 597 a.C., cujo túmulo se pensa que esteja na área de Kafel-al-Hilla perto de Najaff, outra etapa da viagem de Francisco. E entre as muitas visões misteriosas do profeta, a do rio que jorra do santuário narrada nos primeiros versos do capítulo 47 do seu livro não pode deixar de vir à mente: «Eis que saía água da sua parte subterrânea em direção ao oriente, porque Templo estava voltado para oriente. A água descia debaixo do lado direito do Templo, ao sul do altar». A cena é inquietante, mas o desenvolvimento é luminoso: «Quando aí cheguei, eis que havia à beira da torrente uma grande quantidade de árvores […] Por onde quer que a torrente passar, todo o ser vivo que se move viverá. O peixe será muito abundante porque onde quer que esta água chegar, tornar-se-á salubre; e a vida desenvolver-se-á por toda a parte». O rio de sangue pode tornar-se uma fonte de vida jorrante, luxuriante e abençoada. É a sensação que esta viagem já conseguiu transmitir na conclusão do seu primeiro dia.

Andrea Monda