Fala-se muito da Igreja, especialmente sobre os defeitos dos seus membros, e pouco de Jesus. O cardeal Raniero Cantalamessa, pregador da Casa pontifícia, partiu desta observação ao preparar as reflexões quaresmais deste ano. De facto, o purpurado, frade menor capuchinho, propõe colocar Cristo no centro durante as pregações para o Papa e para a Cúria romana que, a partir de 26 de fevereiro, terão lugar no Vaticano durante quatro sextas-feiras consecutivas até 26 de março. Num tempo ainda marcado pela pandemia, como na experiência anterior no Advento 2020, o encontro destinado aos cardeais, bispos, prelados da Família pontifícia, funcionários do Vaticano e do Vicariato de Roma, superiores-gerais ou procuradores de ordens religiosas pertencentes à Capela pontifícia, será realizado na Sala Paulo vi. O tema dos encontros é «“E vós, quem dizeis que Eu sou”? (Mateus 16, 15): o dogma cristológico, fonte de luz e inspiração». Sobre isto fala o pregador nesta entrevista concedida a «L’Osservatore Romano».
Por que foi escolhido este tema?
Devido à escuta de algumas palavras do Papa Francisco. Fiquei fortemente impressionado com as que ele pronunciou na audiência geral de 25 de novembro passado. Dizia, e podia-se compreender pelo tom que este facto o tocava profundamente: «Encontramos aqui [Atos dos apóstolos 2, 42] quatro caraterísticas essenciais da vida eclesial: primeira, a escuta do ensinamento dos apóstolos; segunda, a salvaguarda da comunhão recíproca; terceira, a fração do pão; e quarta, a oração. Elas lembram-nos que a existência da Igreja tem sentido, se permanecer firmemente unida a Cristo… Na Igreja, tudo o que cresce fora destas “coordenadas” está desprovido de fundamento». As quatro coordenadas da Igreja, como podemos ver, são reduzidas, nas palavras do Papa, a uma única: permanecer ancorada a Cristo. A máxima de viver etsi Deus non daretur, como se Deus não existisse, é conhecida. Uma máxima discutível e, de facto, muito debatida e justamente contestada. Mas há ainda outro perigo, não menor, que é viver etsi Christus non daretur, como se Cristo não existisse. É o pressuposto com o qual o mundo e os seus meios de comunicação falam continuamente sobre a Igreja. A sua história (quase sempre a negativa, não a da santidade), a sua organização, o seu ponto de vista sobre os problemas do momento, os factos e os mexericos dentro dela... são de interesse. Quase não se encontra mencionada a pessoa de Jesus. Recordemos a ideia, alimentada durante algum tempo também na Itália, de uma possível aliança entre crentes e não crentes, baseada em valores civis e éticos comuns, nas raízes cristãs da nossa cultura e assim por diante. Por outras palavras, um entendimento não baseado no que aconteceu no mundo com a vinda de Cristo, mas no que aconteceu em seguida, depois dele. Tudo isto deu origem ao desejo de dedicar as meditações da Quaresma à pessoa de Jesus Cristo. É verdade que se fala continuamente de Jesus entre os crentes, dentro da Igreja, mas isso é feito em conjunto com tantas outras coisas. Pensei que seria útil, por uma vez, falar apenas dele, como se ele fosse o único que existe e valesse a pena ocupar-se só dele (que é, afinal, a verdade!).
Quanto espaço terá a situação atual da pandemia nas meditações?
Quase nenhum! Falei sobre a pandemia no discurso que fiz em São Pedro na Sexta-feira Santa de 2020. Nele procurei mostrar como ler com olhos de fé este terrível acontecimento, o que ele nos diz sobre Deus e sobre nós. Nas pregações do Advento passado (sob o título tirado do salmo: «Ensinai-nos a contar os nossos dias, e chegaremos à sabedoria do coração») refleti sobre alguns temas que a pandemia nos obrigou a trazer para fora do esquecimento: a morte, a vida eterna, e sobretudo a certeza de que, ao encarnar, Deus entrou no nosso mesmo barco, que por isso não pode afundar. Na Quaresma, precisamente para manter a fé com a intenção de falar apenas uma vez sobre Jesus, pensei em pôr de lado o tema da pandemia, sobre o qual, afinal, seria presunçoso querer acrescentar mais palavras a todas aquelas que o Santo Padre, podemos dizer todos os dias, está a dirigir a nós crentes e ao mundo sobre o assunto.
O que significa a Quaresma essencialmente para os cristãos?
Eu diria, no fundo, o que significava para Jesus! Jesus retirou-se no deserto para jejuar, claro, mas não só e não principalmente por isso. Retirou-se para rezar, para se sintonizar perfeitamente, até como homem, com a vontade do Pai e a fim de se preparar para a realizar perfeitamente o ministério público que estava prestes a iniciar. Também para nós, a Quaresma deveria ser sobretudo um tempo em que pensamos um pouco mais sobre Deus, ouvimos a Sua Palavra, e por algum tempo distanciamo-nos das preocupações diárias que correm o risco de nos fazer esquecer porque estamos neste mundo. Estas são coisas que o Papa Francisco nos recordou por outras palavras na sua mensagem para a Quaresma, todas centradas em como cultivar neste tempo as três virtudes teologais da fé, esperança e caridade.
Nicola Gori