· Cidade do Vaticano ·

Num livro as catequeses de Francisco sobre as bem-aventuranças

O cristianismo não é fácil mas é feliz

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13 outubro 2020

«Beati i poveri. Catechesi sulle beatitudini» (“Bem-aventurados os pobres. Catequeses sobre as bem-aventuranças”) é o título do livro, publicado pela Libreria Editrice Vaticana (Cidade do Vaticano, 2020, 46 páginas) que reúne as palavras do Papa Francisco pronunciadas nas audiências gerais de 29 de junho de 2019 a 29 de abril de 2020. Apresentamos a seguir amplos excertos do prefácio escrito pelo bispo presidente da Administração do património da Sé Apostólica.

Após dias em que — como disse o Papa Francisco — uma tempestade desmascarou a nossa vulnerabilidade e pôs a nu as certezas falsas e supérfluas com que construímos as nossas agendas, projetos, hábitos e prioridades, e fez cair a “maquilhagem” dos estereótipos com que mascaramos o nosso “ego”, sentimos a necessidade de “retomar” a nossa vida com as suas esperanças, sonhos e também dificuldades (...).

Neste tempo tão “complicado”, o magistério do Papa Francisco guia-nos, pedindo-nos que façamos a nossa reflexão sobre as bem-aventuranças como «documento de identidade do cristão»; com efeito, enquanto representam a «configuração da vida» com os seus dramas e interrogações, desenham a «arte de estar aqui e agora» (J. Mendonça) do cristão.

Entre as páginas mais fascinantes e exigentes do Evangelho, as bem-aventuranças dizem-nos que a vida cristã não é contrária nem pouco propensa à felicidade, nem sequer tem desconfiança em relação a ela; mostram-nos o rosto alegre do crente que na sua vida encontrou os motivos profundos pelos quais vale a pena viver, lutar e esperar; ajudam a levantar-nos e a voltar a partir até quando a esperança parece ter-se tornado “estrangeira” na nossa vida.

Numa homilia no dia nacional da Argentina, o Papa Francisco, ainda arcebispo de Buenos Aires, exortou a «meditá-las com calma (...), uma espécie de “cadência sapiencial”, para que o seu significado chegue ao nosso coração» (...).

Sentado na montanha, como verdadeiro Mestre, Jesus dirige-se não só aos discípulos e à multidão que o segue, mas a todos aqueles que procuram a felicidade, o homem todo, cada homem, anunciando a promessa de uma vida “boa” e plenamente humana, e o caminho a percorrer para a experimentar. As bem-aventuranças atraem-nos precisamente por este motivo: Jesus fala ao nosso coração inquieto, à nossa sede de amor, à nossa indelével necessidade de felicidade, à carência que há no fundo de cada um de nós, de sermos reconhecidos na nossa verdadeira identidade, amados com afeto puro, total, belo e que dure para sempre. Precisamente aqui começa o anúncio de Jesus. Ao dizer “bem-aventurados” Ele recorda o mundo das nossas maiores aspirações, enquanto o que acrescenta de tempos a tempos nos desconcerta e questiona, porque parece indicar exatamente o oposto do que teríamos imediatamente desejado ou procurado.

Não se trata de um discurso consolador nem ilusório, mas de um grito — recordemos as imagens do Jesus de Pasolini — que convida a levantar-nos, a colocar-nos de novo a caminho. A palavra-chave que Jesus repetirá nove vezes é, com efeito, ’ashre, termo que em hebraico soa como um convite a seguir em frente. Uma promessa que é certa e precede aqueles que vivem uma determinada situação. Uma palavra que indica um estilo a assumir. Uma palavra que muda a perspetiva com que se olha para a vida, para a realidade, para os outros (...).

Traduzimos esta expressão, muitas vezes presente nos Salmos e na sabedoria de Israel, como “bem-aventurados” (do grego makárioi, que os Evangelhos tiram da versão dos lxx). Infelizmente, não temos um termo italiano que revele adequadamente o seu conteúdo. “Bem-aventurados” não é um adjetivo, é um convite à felicidade, à plenitude da vida, à consciência de uma alegria que nada nem ninguém pode subtrair nem extinguir (...).

Aceitar o convite do Papa Francisco a meditar sobre as bem-aventuranças significa descobri-las como uma promessa de felicidade, como uma exortação à beleza, a modelar a própria vida até a transformar numa obra-prima. Mas ainda mais que de felicidade, o homem precisa de sentido, e as bem-aventuranças, como promessa, atestam que se pode encontrar sentido até no absurdo da dor, que o mundo pode ser vivido até no inviável da perseguição, da violência sofrida, das situações de guerra (...).

O autorretrato mais exato e fascinante de Jesus — a imagem de si que Ele nos revela e imprime no nosso coração — as bem-aventuranças tornam-se uma revelação de vida possível para nós, se encontrarmos as nossas raízes na humanidade de Jesus. Então compreendemos que até a perseguição e a aflição, a falta de paz e  de justiça são situações que nos podem abrir à bem-aventurança, ensinando-nos a trabalhar pela paz, a ousar a misericórdia, a viver na mansidão, a criar beleza. São o anúncio de que Deus se alia à alegria dos homens e cuida deles. O Evangelho assegura-me que o sentido da vida consiste, no seu íntimo, no seu núcleo profundo, na busca da felicidade (...).

As bem-aventuranças são também um programa para quantos seguem Jesus. Programa inesperado, contracorrente, que provoca e apela a uma verdadeira mudança na vida, que abre novos caminhos que deixam sem fôlego: felizes os pobres, os obstinados a propor caminhos de justiça, os pacificadores, os que têm um coração doce e olhos de criança, os não-violentos, os que são corajosos porque desamparados. Elas são a única força invencível. A felicidade prevista pelas bem-aventuranças não é apenas do futuro, do além: Jesus não diz que os pobres, os mansos, os aflitos “serão” bem-aventurados; diz que “são” bem-aventurados, já o são agora (...). Permeados por esta alegria pascal, a pobreza torna-se riqueza; as lágrimas podem transformar-se em alegria; a pureza de coração torna-se transparência de Deus; a mansidão conquista mais do que a violência; a misericórdia penetra e convence mais do que a severidade; a paz prevalece sobre a guerra; o amor vence o ódio, destruindo-o. Vivendo a lógica exigente das bem-aventuranças, o cristão traça continuamente caminhos de esperança: afirma que o mundo não está nem estará, nem hoje nem amanhã, sob a lei do mais rico e do mais forte (...).

Nunzio Galantino