· Cidade do Vaticano ·

Conversa com o cardeal Jean-Claude Hollerich, presidente da Comece

Por isso estamos a sufocar

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15 setembro 2020

Seremos mais débeis. Todos. Também a Europa. Os Estados Unidos, o Ocidente, como um todo. A Igreja também será mais fraca, segundo o que explicou o cardeal Jean-Claude Hollerich, presidente da Comissão das Conferências episcopais da União europeia (Comece). Porque, na sua opinião, a pandemia acelerou apenas um processo inevitável. Por isso devemos arregaçar as mangas com humildade, reconhecer o cristianismo mais autêntico, agir em conformidade. Apelar à solidariedade. De facto, explica o purpurado nesta conversa com “L’Osservatore Romano”, para além da terrível doença ainda sem vacina, o que nos sufoca é um consumismo que não nos permite viver autenticamente. E um cristianismo apenas  cultural, que não possui do que se nutrir. Nem para  nutrir.

Eminência, parece ser possível dizer que em todo o debate mundial sobre a pandemia a grande ausência é a tomada de responsabilidade para com o sul do mundo. Se considerarmos que a África, por exemplo, parece uma bomba, também virológica, pronta a explodir, na sua opinião é mais útil apelar à solidariedade ou ao realismo?

Penso que a solidariedade é sempre uma resposta ao realismo. A África já foi duramente atingida. Não pelos casos de doentes ou mortos, mesmo que sejam muitos, mas pelo sofrimento da economia. As pessoas em África já se tornaram mais pobres. Temos que aproveitar esta crise para fazer um gesto de solidariedade. Nós na Europa somos ricos, e somos ricos porque aproveitámos a riqueza da África, por isso é simplesmente correto que, como irmãos e irmãs, ajudemos estas pessoas a encontrar um novo equilíbrio económico, para poderem ganhar a vida sem terem de enviar refugiados para a Europa. Como cristãos, temos esta responsabilidade por toda a terra. A nossa solidariedade não deve conhecer fronteiras. Claro, o que disse sobre realismo é muito verdadeiro. Porque os países da Europa, ou mesmo as pessoas na Europa, agora quando falam dos doentes, estão a falar de si mesmos, porque a pobreza diz respeito também à Europa, estão a falar de como combater a pobreza aqui. E isso é legítimo. Mas não podemos esquecer os mais pobres. O Evangelho e Cristo não nos deixam esquecer deles.

Recentemente em Alpbach, Áustria, na missa de abertura do Fórum europeu, Vossa Eminência mencionou uma espécie de intervenção conjunta da Europa para combater a pandemia, para defender a paz e não trair os valores cristãos. Que forma deveria assumir esta intervenção?

Penso que devemos fazer algo pela África como a América fez pela Europa após a guerra. Não é suficiente realizar pequenos programas de ajuda. Devemos realmente ter um grande plano de desenvolvimento para esse continente. É mais difícil do que foi para a Europa, porque depois da guerra a Europa recuperou os seus sistemas democráticos e sabemos que na África existem sistemas políticos que por vezes não permitem o desenvolvimento dos povos africanos. É também verdade que a Europa não está sozinha, em África. A China está a tornar-se cada vez mais poderosa, a sua presença está a ser sentida. Assim, devemos fazer um esforço conjunto com a China, com todos os povos de boa vontade, para o desenvolvimento dos países africanos. Falamos como Igreja católica mas também há outras igrejas em África, outras religiões... Seria bom que as religiões se tornassem a consciência da humanidade, para favorecer juntas o desenvolvimento destes povos africanos... Porque Deus ama os povos de África e da Europa da mesma forma. Deus não tem uma preferência pela Europa, isso é claro. Pensar o oposto é uma expressão do eurocentrismo latente. E não é correto, de uma perspetiva cristã. Se estamos conscientes de que Deus ama cada homem, cada mulher, temos de o fazer juntos. Porque a felicidade, um certo bem-estar, paz, justiça, deve ser para todos.

Faço-lhe uma pergunta franca: acha que a Europa, tal como está, deveria ser reformada ou até refundada?

Tenho sempre esperança na Europa. Porque quando olho para a curta história da União europeia, vejo que já houve muitas crises e que a Europa as superou sempre. Penso que havia um perigo real, no início da pandemia, de não ser capaz de manter uma nova ordem mundial. Mas agora vemos que a Europa desempenhará a sua tarefa. Penso que as Igrejas cristãs, juntamente com os nossos amigos de outras religiões, devem sentir a responsabilidade da chamada à consciência europeia, fazer um pouco mais, mostrar esta solidariedade, o que significa renunciar a alguma riqueza para si a fim de a partilhar com os outros.

Por que parece que a Europa secular tem tanta dificuldade de encontrar e defender o sentido profundo da sua ação e a sua razão de ser? É um problema político ou cultural?

Penso que de alguma forma ainda existem vestígios da cultura cristã na cultura europeia. Estes vestígios não são como ruínas antigas, mas são momentos ainda ativos na cultura da Europa. Estes vestígios ajudam-nos a viver mais em solidariedade. E estão também presentes em homens e mulheres políticos que não se declaram cristãos. Vemos, por exemplo, como foi recebida a Laudato si’. Há uma grande abertura a estas mensagens, especialmente as do Santo Padre, até numa Europa laica. Por vezes esta Europa secular ou secularista também se apresenta em trajes cristãos. Mas são apenas vestes. Não são os elementos do cristianismo e do Evangelho que estão em ação, é só um carnaval. A solidariedade, o facto de partilhar, de querer partilhar riquezas com os mais pobres, de respeitar os direitos humanos: estes são os elementos distintivos do cristianismo. Mas infelizmente também penso que o cristianismo está a ficar mais fraco na Europa. Mesmo depois da pandemia, penso que o número de pessoas que irá à igreja diminuirá. Devemos pensar sempre na evangelização da Europa. Não é verdade que a Europa é sempre cristã. Também não tem sido verdade na história, porque houve momentos de completo empobrecimento. Devemos proclamar o Evangelho à Europa, devemos levar a cabo uma obra de evangelização. Devemos fazê-lo primeiro com ações, com o nosso comportamento, com a nossa ajuda, e depois com palavras. Porque as pessoas nos dizem: “Sempre ouvimos estas palavras mas elas não nos dizem nada, porque não se vive o que se proclama”. Como Igreja, somos chamados por Deus, também através da voz do nosso Papa, a tornar-nos mais cristãos, verdadeiramente mais simples, e até economicamente mais pobres. Porque temos um consumismo na Europa que já não nos permite viver. Estamos a asfixiar a nossa vida na Europa. Precisamos de uma evangelização que seja profunda. Precisamos de mudar, precisamos de ouvir a voz de Cristo que nos chama a uma mudança profunda.

Voltemos à pandemia. Como considera, em geral, a intervenção europeia?

Os mais “avarentos” não tiveram razão. Mas agora temos de esperar pelo debate no Parlamento europeu, nos parlamentos nacionais. Ainda não acabou. Temos de acompanhar os diferentes processos. Mas penso que a Igreja na Europa é também chamada a dar uma palavra de apoio a estas ações. Sem cair na tentação de querer fazer política ou de impor uma resposta em vez de outra. Essa não é a nossa tarefa. Mas sim afirmar que a União europeia é importante. Porque sem a União europeia, os países mais pobres ou os mais atingidos pela pandemia, como Itália, França e Espanha, seriam ainda mais pobres, e sem a União europeia, os países ricos, como os do Norte, não poderiam ser mestres de exportações. Todos nós precisamos desta União europeia. E como cristãos, devemos ser a favor do bem comum. É muito difícil pensar num bem comum sem a União europeia. Eu não sou europeísta. Sou a favor do bem comum. E o bem comum é maior do que a Europa. Penso que há muitos homens, muitas mulheres, nem todos cristãos, que compreenderam isto e por conseguinte querem mais solidariedade. Então devemos apelar a mais solidariedade, que seja económica e politicamente possível.

Gostaria de lhe pedir uma previsão: no final, como sairá a Europa deste período dramático, mais ou menos forte? E a Igreja?

Começarei pela segunda parte da pergunta. Penso no meu país: seremos em menor número. Porque todos aqueles que não vão à missa, pois iam apenas por razões culturais, estes “católicos culturais”, de esquerda e de direita, vão deixar de ir. Eles viram que a vida é muito confortável. Podem viver muito bem sem ter de ir à igreja. Até as Primeiras Comunhões, o catecismo para crianças, tudo isto diminuirá em número, tenho quase certeza. Mas não é uma queixa da minha parte. Ter-se-ia verificado este processo mesmo sem uma pandemia. Talvez tivesse levado mais dez anos. Mas neste ponto, a Igreja deve inspirar-se numa humildade que nos permita reorganizar-nos melhor, para sermos mais cristãos, porque de outra forma esta cultura do cristianismo, este único catolicismo apenas cultural, não pode durar no tempo, não tem na sua base nenhuma força viva. Penso que é uma grande oportunidade para a Igreja. Temos de compreender o que está em jogo, temos de reagir e pôr em prática novas estruturas missionárias. E quando digo missionárias, refiro-me tanto à ação como à palavra. Penso também que no mundo após a pandemia, o Ocidente, os Estados Unidos e a Europa, serão mais frágeis do que antes, porque o fenómeno da aceleração provocada pelo vírus fará crescer outras economias, outros países. Mas devemos ver isto com realismo, devemos abandonar o eurocentrismo presente nos nossos pensamentos e com grande humildade trabalhar com outros países para o futuro da humanidade, para ter mais justiça. Também, no sentido indicado pela Laudato si’, temos de nos empenhar. Mas um bom empenho requer humildade. Sem humildade não é possível um compromisso realista.

Qual foi o seu maior desapontamento nestes meses, e qual foi o maior momento de esperança?

A minha maior desilusão foi quando houve reações completamente nacionalistas na Europa no início da pandemia. Como se a União europeia, como solidariedade, não existisse. Isso magoou-me muito. Tal como a fronteira fechada com a Alemanha no ano do aniversário da ocupação alemã de Luxemburgo: uma insensibilidade à história europeia. Mas a minha esperança vem do facto de os responsáveis terem visto, compreendido e dito que mesmo na presença de uma nova crise, de um ressurgimento de casos, nunca mais farão o mesmo. E depois a minha esperança é Cristo. Para mim é ver a minha fragilidade. E que a minha fragilidade não é uma ameaça para mim, mas uma oportunidade para dizer que encontro a minha salvação em Jesus Cristo, que ele é a minha esperança e que a sua palavra, a sua morte na cruz, a sua ressurreição, fazem com que eu me comprometa cada vez mais por uma sociedade mais justa.

Marco Bellizi