Durante o bloqueio devido ao coronavírus recebi um e-mail no qual uma estudante me escreveu sobre o isolamento pandémico a que foi forçada, sentido como “privação da felicidade”. Preencheu aquele vazio de sentido com a leitura de A Peste, de Albert Camus, e ouviu algumas canções sobre a quarentena. Na carta, relata o que a realidade lhe colocou à frente, isto é, rever as razões pelas quais vive. «As minhas convicções são sólidas, fundadas na verdade, ou ilusórias?», pergunta-se a jovem. «Questiono-me se Deus faz parte dos meus desejos, se alguma vez o notei e por que só agora penso n’Ele», escreve. Esboça um pensamento sobre a religião e o ambiente ao seu redor. A música é uma base em que se apoiam ansiedades e medos, canções que lhe dizem que «tudo o que te enraivece não é nada», citando Ivano Fossati em Ma che sarà questa canzone.
No longo elenco de discos ouvidos há aquele sábado leopardiano que desiludirá as expetativas. Tive a impressão de entrever o tédio dos domingos todos iguais, durante o bloqueio em casa. A moça ouve repetidamente Amy Winehouse e Bob Marley, e lê poesias de Jim Morrison. Há a tristeza dominical de Blue Sunday dos Doors, a agitação de Sunday Morning dos Velvet Underground e depois ainda o isolamento nos Sonic Youth, a marginalização em John Lennon e o surrealismo religioso de Kayne West. Uma mistura de sentimentos contrastantes que a perturbam.
Tento compreender aquele ponto de vista e procurar um ponto de contacto nos seus livros e discos. O romance de Camus narra a desencarnação dos relacionamentos sociais, a ténue memória de um rosto amado que desgasta os personagens numa cidade fechada e curvada pela peste (hoje escreveríamos de áreas vermelhas). Protagonistas que cumprem o seu dever, forçados a praticar o bem sem heroísmos. É a alienação presente em David Bowie; vem-me à mente a sua discografia enquanto procuro decifrar aqueles textos indicados no e-mail.
Sinto uma dor semelhante à da jovem estudante, também eu perdi o gosto da festa. Em tempos de pandemia, a santa Missa celebrada sem o povo fez-me saborear um pão de vida diferente, uma experiência difícil de descrever. Um pároco obrigado a manter-se fisicamente distante dos fiéis é uma contradição. No entanto, procurei não evitar uma realidade desconhecida e ver uma Presença naquele deserto de relações.
A música de David Bowie tem a tarefa de oferecer uma chave de leitura para o tempo presente e indicar um horizonte de esperança à estudante. Em Bowie sempre encontrei uma resposta. As suas canções poderiam reavivar a memória dos domingos vividos em família e na igreja. Com efeito, Bowie escreveu sobre os domingos, um tempo em que tudo se recria e se destrói. No pensamento de Bowie, o domingo é entendido de forma ambivalente. Ele recitou o Pai-Nosso no palco do Wembley Stadium em Londres, no concerto de 1992 em honra ao líder dos Queen, Freddie Mercury. Naquela circunstância, declarou: «Recitar o Pai-Nosso naquele palco pareceu-me um gesto natural. Uma invocação para me reencontrar».
As suas canções têm uma estrutura semelhante à oração clássica e assim — declarou o próprio Bowie — podem ser consideradas. Não é arriscado compará-las com os salmos de lamentação, pois nos textos de Bowie é possível ouvir a súplica dolente a Deus. Uma canção acima de todas é Word On A Wing, em que canta o encontro com o Senhor e a necessidade de não mudar não obstante Deus tenha penetrado à força na sua vida: «Senhor, ajoelho-me e ofereço-te a minha palavra sobre uma asa. Procuro de todos os modos entrar no teu esquema».
Em Sunday há uma batalha corpo a corpo com Deus. Bowie vai à deriva, em busca de uma luz, e invoca o Senhor no domingo, dia de festa em que se deveria ressurgir em vez de morrer. Não se aceita a necessária passagem da paixão e morte. Aquela morte de desejo que pode ser lida nas entrelinhas da carta da aluno do liceu. O domingo e Deus estão presentes no texto de Julie, onde há nuvens escuras no céu e um amor não correspondido. O sentido de culpa persegue-o em Can’t Help Thinking About Me, onde sobressai a nostalgia dos domingos em que se ia à igreja e daquele dia em que cessava todo o medo: «Lembras-te quando íamos à igreja aos domingos? Eu passava a noite inteira acordado, amedrontado com a ideia da escola na segunda-feira. Quem me dera voltar a ser criança e sentir-me seguro». The Pretty Things Are Going To Hell torna-se motivo para se interrogar sobre o que é eterno e o que, ao contrário, é condenado. Quem descobrir, em quem acreditar e quem ouvir aos domingos? Talvez esta seja a experiência dos jovens de hoje, jovens por vezes desorientados mas que anseiam pela verdade. Não morre a esperança de encontrar o amor aos domingos em Rubber Band, aquela mesma paixão que nasce aos domingos em Love You Till Tuesday.
De acordo com David Bowie, nascemos ou morremos no dia de domingo. Quem sabe de que modo a estudante e os seus colegas viverão os próximos domingos... saberão eles habitar esta nova realidade, ou tornar-se-ão paranóicos? Terão famílias capazes de os fazer sentir-se amados? Haverá comunidades cristãs capazes de saciar aquela fome de felicidade?
Ajuda-me outra canção de David Bowie, A Better Future. Anoto alguns versos na resposta à jovem do liceu. Uma prece dorida de Bowie ao Senhor por um amanhã melhor: «Por favor (Deus), não despedaces este mundo. Por favor, retoma este medo que nos atormenta. Peço um futuro melhor, ou eu poderia deixar de te amar. Por favor, assegura que teremos um amanhã. Toda esta pena e esta dor, pretendo um futuro melhor. Ou eu poderia deixar de precisar de ti». Canção inserida no final da playlist e enviada como oração contra o medo que paralisa, com alguns versículos do Salmo 72: «Ele libertará o pobre que o invoca e o miserável desamparado; terá piedade de quantos são frágeis e indigentes, e salvará a vida dos necessitados». Pois tudo se resolverá para o nosso bem.
Massimo Granieri