«Vi a miséria do meu povo no Egito e ouvi o clamor que lhe arrancam os seus opressores; conheço as suas aflições. Desci para o libertar». As palavras que Deus, dos ramos de uma sarça que arde sem se consumir, dirige a Moisés no capítulo 3 do livro do Êxodo marcam o início da história, de uma história verdadeiramente humana, de uma história de salvação. Antes destas palavras não havia uma verdadeira “história”, o homem era apenas um elemento natural entre outros seres vivos como Ele, submetido ao ritmo cíclico da natureza, no âmbito de uma dura luta pela sobrevivência, que sempre acabava na lei do mais forte. Os egípcios e os judeus. Agora acontece um facto novo. Alguém, acima da natureza, o próprio Criador, inter-vém, entra, “desce” para libertar o homem por cuja “miséria” sente compaixão. Esta descida acontece porque três ações são realizadas em conjunto: ver, ouvir, conhecer. E depois passa-se à liber-ação. Este é o início da história de Israel que tem no advento de Cristo o cumprimento, uma história que vê sempre o homem como protagonista juntamente com Deus. «Aquele que criou tudo sem ti, não te salvará sem ti», recorda Santo Agostinho. Esta história de salvação só pode acontecer com a resposta ativa do homem, unicamente se o caminho for um sín-odo, um caminho percorrido em conjunto: Deus caminha com o seu povo, que acolhe a sua proposta de liberdade.
Esta história, como muitas outras narradas na Bíblia, acontece sempre, todos os dias. Deus chama e propõe, o homem responde. Pode fazê-lo porque é capaz de o fazer, é responsável. Às vezes fá-lo, mas nem sempre, e quando o homem não responde, volta a ser apenas um elemento natural. Reconhece-se pelo facto de que ele deixa adormecida a sua responsabilidade, colocando-a “em letargia”. Foi esta expressão que o Papa utilizou na sua última Mensagem para o dia mundial dos pobres, divulgada a 13 de junho: «As graves crises económicas, financeiras e políticas não cessarão enquanto permitirmos que permaneça em letargia a responsabilidade que cada um deve sentir para com o próximo e toda a pessoa». Interessante este verbo: «Não cessarão», como se dissesse que o desenvolvimento económico, confiado apenas aos homens, se torna um “fluxo contínuo” natural de crises graves, de lutas pelo poder para satisfazer a ganância insaciável. Se a ganância nunca dorme, para se satisfazer tem necessidade de que tudo o resto, isto é, a consciência, durma, esteja em hibernação, a fim de que também a responsabilidade do homem desvaneça até desaparecer. É necessária uma intervenção sobrenatural para interromper este ciclo aparentemente inelutável, e isto acontece pontualmente graças ao facto de que, como recordava Pascal, «o homem supera infinitamente o homem». Esta intervenção é expressa num gesto que o Papa quis indicar como título da sua mensagem: Estende a tua mão aos pobres. Um gesto que hoje, até neste momento de crise dramática, acontece frequentemente, todos os dias, só que nós não nos damos conta. O Papa cita sete exemplos de “mãos estendidas”: do médico, da enfermeira, «de quem trabalha na administração e providencia os meios para salvar o maior número possível de vidas», do farmacêutico, «do sacerdote que, com o coração partido, continua a abençoar», do voluntário, «de homens e mulheres que trabalham para prestar serviços essenciais e segurança. E poderíamos enumerar ainda outras mãos estendidas, até compor uma ladainha de obras de bem. Todas estas mãos desafiaram o contágio e o medo, a fim de dar apoio e consolação».
O que fizeram todas estas pessoas? Agiram como Deus: viram, ouviram, conheceram o sofrimento, correram para libertar os outros da dor, ou pelo menos para os acompanhar contra um mal que fez tudo para destruir a própria possibilidade desta companhia. Aquelas mãos estendidas eram as mãos de Deus que, para acariciar o homem, pede a colaboração das mãos de outros homens. O gesto de estender a mão aos pobres, observa o Papa, «faz ressaltar, por contraste, a atitude de quantos conservam as mãos nos bolsos e não se deixam comover pela pobreza, da qual frequentemente são cúmplices também eles. A indiferença e o cinismo são o seu alimento diário».
Tornamo-nos colaboradores da ternura de Deus ou indiferentes não de uma só vez, mas através de uma “alimentação diária”. «Não nos improvisamos instrumentos de misericórdia», continua o Papa na sua Mensagem: «Requer-se um treino diário, que parte da consciência de quanto nós próprios, em primeiro lugar, precisamos de uma mão estendida em nosso favor. Este período que estamos a viver colocou em crise muitas certezas. Sentimo-nos mais pobres e mais vulneráveis, porque experimentamos a sensação do limite e a restrição da liberdade. A perda do emprego, dos afetos mais queridos, como a falta das relações interpessoais habituais, abriu subitamente horizontes que já não estávamos acostumados a observar. As nossas riquezas espirituais e materiais foram postas em questão e descobrimo-nos amedrontados. Fechados no silêncio das nossas casas, descobrimos como é importante a simplicidade e manter os olhos fixos no essencial».
Manter os olhos fixos, isto é, ver. E obedecer, ou seja, pôr-se à escuta, porque há um grito na história dos homens que deve ser ouvido. Assim, conheceremos o sofrimento dos outros. Esta é, talvez, a passagem mais delicada: o mundo de hoje parece estar dividido em duas partes que se ignoram, uma nada sabe da vida da outra, não consegue achar um ponto de encontro (este seria o “lugar” da política), e o seu confronto torna-se inevitavelmente um conflito. Mas só se conhecermos o sofrimento, se o reconhecermos, poderemos realmente passar para a ação de ir ao encontro, de socorrer, de salvar. O Papa tem palavras muito claras e inequívocas acerca deste aspeto: «Não podemos sentir-nos “tranquilos”, quando um membro da família humana é relegado para a retaguarda, reduzindo-se a uma sombra. O clamor silencioso de tantos pobres deve encontrar o povo de Deus na vanguarda, sempre e em toda a parte, para lhes dar voz, defendê-los e solidarizar-se com eles face a tanta hipocrisia e tantas promessas não cumpridas, e para os convidar a participar na vida da comunidade». É um discurso que sem dúvida tem consequências políticas, mas antes ainda é profundamente humano e autenticamente cristão, dirigido ao povo dos cristãos que, pela sua natureza, não pode, nesta terra, sentir-se “tranquilo”.
Andrea Monda