· Cidade do Vaticano ·

Reflexão litúrgico-pastoral Para o domingo de Ramos e da Paixão do Senhor

O amor extremo de um Rei humilde

 O amor extremo de um Rei humilde  POR-012
21 março 2024

Batizado com o Espírito Santo no Jordão, confirmado com o Espírito Santo no Tabor, Jesus realizou a sua missão filial batismal anunciando o Evangelho do Reino de Deus e fazendo as suas «obras». A sua «viagem» chega agora ao fim, em Jerusalém, onde o seu Batismo deve (plano divino) ser consumado (ainda Lc 12, 49-50) na sua Morte Gloriosa: única Fonte do Espírito Santo para nós, porque única Fonte da Vida Eterna verdadeiramente Dada (sempre At 2, 32-33; Jo 19, 30 e 34; 7, 38-39). De facto, não se alcança através da nossa planificação. As coisas supremas não são planificáveis. Já estão prontas para receber. A missão filial batismal do Filho de Deus finalmente consumada! É que fomos, de facto, batizados na sua Morte (Rm 6, 3), e, com Ele, fomos com-sepultados, com-ressuscitados, com-vivificados e com-sentados na Glória! (Ef 2, 5-6; Cl 2, 12-13: tudo verbos cunhados por Paulo e postos em aoristo histórico!). Formamos, por isso, «a Igreja que Ele amou» (Ef 2, 25). A este amor de Cristo pela Igreja chama Paulo «o mistério grande» (Ef 5, 32). Nós, a Igreja do amor de Cristo, somos, portanto, a esposa bela, a nova Jerusalém (Ap 19, 7-9; 21, 2.9-27) que, juntamente com o Espírito, diz ao Senhor Jesus: Vem! (Ap 22, 17).

2. O tom deste Domingo de Ramos é dado pela página preciosa de Marcos 11, 1-10, que nos mostra o Rei messiânico a tomar posse da sua Cidade, a «Cidade do Grande Rei» (Sl 45, 5; 47, 2-3; Tb 13, 11; Mt 5, 35), a Esposa bela que nascerá do seu Sangue: Esposa cúmplice da Morte do Esposo, e beneficiária da Morte do Esposo! Esposa, portanto, e no entanto! Que ao encontro do Esposo desce em vestido de noiva, não de viúva! (Ap 21, 2). O Rei messiânico toma posse da sua Cidade, a Filha de Sião, a Esposa; vem montado sobre o jumento da paz, e não sobre cavalos de guerra, cumprindo Zacarias 9, 9. De notar que Zacarias escreveu esta página deslumbrante de um Rei diferente, pobre, manso e humilde, em contraponto com o imponente espetáculo do grande Alexandre Magno, porventura o maior imperador que algum dia o mundo conheceu, quando este, em finais do século iv a. c ., descia a costa palestinense a caminho do Egito, com todo o seu arsenal de riqueza e de prepotência militar! Estendem-se as capas e ramos de árvores no caminho: assim se procedia quando era ungido o rei e como tal aclamado, como se pode ver no caso de Jeú (cf. 2 Rs 9, 13). A multidão canta «Hossana» [= «Salva, por favor!»] (Sl 118, 5), saudando o Rei-que-Vem, «Aquele-que-Vem» (título divino) (Sl 118, 26), com o Reino de David, o novo David!

3. Dado o insólito da situação, não é possível não reparar que Jesus não entra em Jerusalém como Peregrino ou Mestre ou Taumaturgo. Mas como o Rei futuro prometido, pobre e humilde, anunciado em Zacarias 9, 9. Por isso, nesta última etapa do seu caminho, desde Betfagé e Betânia, perto do Monte das Oliveiras, até à Cidade de Jerusalém, Jesus não vai a pé, como sempre andou nos caminhos das cidades e aldeias da Palestina, ou de barco, quando se tratava de atravessar o mar da Galileia. Agora, neste último troço da sua viagem, Jesus faz questão de o percorrer, não a pé, mas montado num jumento, ainda não montado por ninguém (Mc 11, 2): o Rei é o primeiro em tudo! E toda a temática relativa ao jumento montado por Jesus torna-se tão evidente, que não pode passar despercebida a ninguém. Basta reparar na distribuição dos dez versículos desta passagem (Mc 11, 1-10): sete ocupam-se com a meticulosa procura do jumento e com o modo simples e novo, sem arreios, como Jesus o monta!

4. Ainda hoje, no domingo de Ramos, não obstante o ambiente abertamente hostil aos cristãos que se respira, se faz, desde Betfagé, uma pequena aldeia hoje totalmente muçulmana com um pequeno santuário à guarda dos Franciscanos, uma impressionante procissão e manifestação de fé que, descendo o Monte das Oliveiras, termina na Igreja de Santa Ana, junto da porta de Santo Estêvão (ou dos Leões).

5. O Evangelho que enche este Domingo de Ramos na Paixão do Senhor é o imenso e impressionante relato da Paixão de Marcos 14, 1-15, 47 (note-se que o texto soma 119 dos 677 versículos que contabiliza o inteiro Evangelho de Marcos), que marca o ritmo da «Semana Santa», que as Igrejas do Oriente chamam «Semana Grande», e que o antigo rito da Igreja de Milão conhecia por «Semana Autêntica». Somos nós, portanto, carregando os nossos ódios, raivas, mentiras, invejas e violências, seguindo a par e passo o Rei manso e obediente que a nós e por nós se entrega por amor, absorvendo, absolvendo e dissolvendo assim o nosso lado sombrio e pecaminoso. Momentos decisivos em que a Esposa bela, por graça tornada bela, segue o Esposo passo a passo: a unção para a sepultura em Betânia (Mc 14, 3-9), a Ceia Primeira (e não última!) (Mc 14, 12-31), o abismo do Getsémani (Mc 14, 32-42), a prisão (Mc 14, 43-52): todos o abandonam (Mc 14, 50); Jesus fica sozinho, verdadeiro «Resto de Israel», os processos e a condenação (Jesus afirma-se como «o Bendito», «o Filho de Deus», «o Messias», «o Rei»), as negações de Pedro, o canto do galo e as lágrimas (Mc 14, 66-72), a entrega à morte de cruz por Pilatos (Mc 15, 15), mas, na verdade, por Deus (1 Cor 11, 23: «Na noite em que ia ser entregue», sendo este paredídeto um passivo divino!), a coroa de espinhos, a Cruz santa e gloriosa, as três tentações por parte dos que passavam, dos sacerdotes, dos demais crucificados: «Salva-te a ti mesmo», «desce da cruz» (Mc 15, 29-32), a oração do Salmo 22 (todo): começa «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?», e termina «esta é a obra do Senhor!», a agonia e a Morte precedida do grande grito (Mc 15, 33 e 37), que indica a Vitória de Deus, enfim, a sepultura. Proclamação da máxima Obra de Deus no mundo, a indizível Economia divina na vida terrena do Filho de Deus! A proclamação deve seguir-se com a conversão do coração e, sobretudo, com o louvor no coração.

6. Quem atravessa com extremosa atenção este imenso texto, há de por força reparar no silêncio prolongado de Jesus perante testemunhas falsas e acusações falsas. Este silêncio aparece condensado e referido em dois momentos, que são também os únicos em que Jesus quebra o silêncio para responder a duas perguntas. Primeira anotação: «Levantando-se então o sumo sacerdote no meio deles, interrogou Jesus, dizendo: “Nada respondes a estes que testemunham contra ti?”. Ele, porém, ficou calado, e nada respondeu. O sumo sacerdote interrogou-o de novo: “És tu o Cristo, o Filho do Bendito?”. Então Jesus disse: “Eu sou!”» (Mc 14, 60-62). Segunda anotação: «Pilatos interrogou-o: “Tu és o Rei dos judeus?”. Ele então respondeu e disse-lhe: “Tu o dizes!” (Mc 15, 2). E acusavam-no os sumos sacerdotes de muitas maneiras. Então Pilatos interrogou-o novamente e disse-lhe: “Não respondes nada? Vês de quantas coisas te acusam!”. Jesus, porém, nada mais respondeu» (Mc 15, 2-5). Vê-se bem que Jesus apenas quebra o silêncio por duas vezes, para responder a duas perguntas sobre a sua identidade.

7. Para podermos acompanhar Jesus nas últimas decisivas vinte e quatro horas da sua vida histórica, devemos ter presente que a Páscoa hebraica se celebrava anualmente no dia 15 de Nisan, sendo o dia da véspera, 14 de Nisan, naturalmente o dia de preparação para a Páscoa. Segundo o Evangelho de Marcos, no ano da morte de Jesus, o dia de Páscoa, 15 de Nisan, caía na sexta-feira, sendo naturalmente a véspera, 14 de Nisan, quinta-feira. Importa ainda ter presente que o dia mudava, não à meia-noite, mas ao pôr do sol. Pelo que a Ceia Pascal terá sido em 14 de Nisan, quinta-feira, antes do pôr do sol, dando-se início à refeição depois do pôr do sol, sendo já, portanto, 15 de Nisan, sexta-feira. As vinte e quatro horas que nos interessam caem, portanto, entre as 18h00 de quinta feira e as 18h00 de sexta-feira. Anotemos, então: pelas 18h00, depois do pôr do sol, dá-se início à Ceia Pascal; das 21h00 até às 24h00, Jesus está em oração no Getsémani, enquanto os seus discípulos caem de sono; às 24h00, dá-se a prisão de Jesus, e sucedem-se os interrogatórios a Jesus perante o Sumo Sacerdote e o Sinédrio, enquanto cá fora se registam as três negações de Pedro até às 3h00, que fecham com o segundo canto do galo; pelas 6h00, Jesus comparece diante de Pilatos; pelas 9h00 tem lugar a Crucifixão de Jesus; das 12h00 às 15h00, há trevas em vez da Luz!; as 15h00 assinalam a Morte de Jesus; pelas 18h00, antes do pôr do sol, acontece o Sepultamento de Jesus.

8. Note-se que, na cronologia dos Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), esta quinta-feira é o dia da Preparação da Páscoa, comendo-se a Ceia Pascal logo após o pôr do sol, sendo já sexta-feira. Como se vê, esta cronologia vê na Ceia de Jesus com os seus Discípulos uma Ceia Pascal. Também de acordo com esta cronologia, Jesus é preso, julgado, condenado, crucificado, morto e sepultado em sexta-feira, Dia da Páscoa dos judeus, o que não deixa de ser muito estranho! O Evangelho de São João apresenta outra cronologia, hoje defendida pela maioria dos estudiosos, segundo a qual Jesus terá comido uma Ceia, a sua Ceia Nova na quinta-feira, mas não a Ceia ritual da Páscoa dos judeus, e foi preso, julgado, condenado, crucificado, morto e sepultado, em sexta-feira, dia da Preparação, antes da Ceia ritual da Páscoa dos judeus, que João coloca no sábado, não na sexta-feira. No seu Livro sobre Jesus de Nazaré, Bento xvi defende também esta cronologia joanina. De resto, as Igrejas do Ocidente seguem a cronologia dos Sinóticos: por isso, a nossa Eucaristia é com pão Ázimo, derivado do ritual da Ceia da Páscoa dos judeus. Por seu lado, as Igrejas do Oriente seguem a cronologia joanina, sendo a sua Eucaristia com pão comum, dado não derivar do ritual da Páscoa dos judeus.

*Bispo de Lamego

D. António Couto *