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Um “malandro” do futebol brasileiro

 Um “malandro” do futebol brasileiro  POR-002
11 janeiro 2024

Publicamos o oitavo capítulo do ensaio «Éloge de l’esquive» (Olivier Guez, 2014), intitulado «Terrenos baldios».

Tudo começou numa praia e na rua, em pequenos campos improvisados, de terra batida, capim seco, depois de asfalto, na cidade, nas favelas, no campo. Por toda a parte, nos quatro cantos do gigante tropical, de Manaus ao Rio, a “náiade negra” de Neruda, a mesma cena, todos os dias, há mais de um século.

Descalços ou de chinelos, raramente com sapatos de lona, nunca de couro, chegam algumas crianças, formam dois grupos, em cada um deles um grande e um pequeno, os grandes na baliza ou na defesa, pedras, bolsas ou pedaços de madeira delimitam as balizas, começa-se. Jogam, sem aquecimento nem voltas ao redor do campo — que campo? — sem stretching, jogam, e quando não há uma bola, jogam com uma velha bola de ténis, uma laranja, um coco, um frasco, um rolo de meias, de papel ou de velhos collants, qualquer coisa.

Depressa a domam, controlam, suavizam e acariciam, mais docilmente do que a seda, crescerão juntos, como um prolongamento de si mesmos, unidos nas adversidades, companheira nos bons e maus momentos, Margarida, Leonor, Maricota.

Assim nascem os dribladores dos terrenos baldios, os campos de várzea, futuros craques do futebol brasileiro. Primeiro reflexo: eliminar o adversário, zombar do irmão mais velho, exasperar o vizinho, ofegante, cómico. Driblar, numa nuvem de poeira, tudo o que estiver ao alcance, em pequenos espaços. Evitar os obstáculos, as intervenções e as rasteiras dos laterais de defesa, como é normal, mas também os pedregulhos, os buracos, os caixotes de lixo, as calçadas; ziguezaguear entre cães, árvores, carros e postes de iluminação, todo o mobiliário urbano. As crianças devem improvisar. Por necessidade, pelo peso do destino, os pequenos brasileiros são mais técnicos, mais pérfidos e menos disciplinados do que os aprendizes de futebol europeus, formados nos clubes desde a mais tenra idade. Inventam, tudo é possível, como os seus irmãos mais velhos, dançam samba, balançam o corpo, agitam os pés, os braços e as ancas, o samba livre, alegre e anárquico, tão diferente das figuras impostas do tango e da salsa.

O movimento de ancas do driblador de rua assemelha-se ao do lutador/dançarino de capoeira, a ambígua arte marcial dos escravos, transformada em jogo — a roda, o círculo — quando se aproximavam os senhores, que a proibiam.

Agilidade e esperteza, tradição de driblar e de se esquivar, cultura da dança, da música e do canto, desenvoltura dos movimentos da bacia, o driblador e o capoeirista compartilham a mesma linguagem corporal, o jogo de pernas, o gosto pela diversão e pelas acrobacias (os floreios da capoeira), o âmago afro-brasileiro.

Aquelas borboletas com cintura de vespa, num misto de graça e astúcia, são irmãos siameses.

Na praia, na favela ou num beco sem saída, quem manda no terreno baldio é o driblador. Os meninos invejam o artista, mas com respeito; as meninas admiram o defesa-central, inventor de gestos disparatados, dribles do giro e ganchos absurdos, o homem em suspensão que nunca tem medo de perder a bola, de falhar, de recomeçar, intrépido.

Sempre que estou no Rio, no crepúsculo suave, ouvindo os murmúrios de um oceano vermelho persa, admiro, às vezes durante longas horas, os miniacrobatas e os seus irmãos mais velhos, os jovens sem mãos do footvolley.

Haverá sempre a praia, os torneios juvenis aos sábados em Copacabana, mas desde há algum tempo dribla-se menos nas ruas, devido aos carros, à violência, à falta de espaço, ao preço do metro quadrado no Rio e em São Paulo, nas grandes cidades do Brasil, terra do futuro, predisse Stefan Zweig, antes de se suicidar: duzentos milhões de brasileiros, apenas noventa e três em 1970, ano da suprema consagração na Cidade do México. Entretanto, o futebol de salão ou futsal tornou-se a atividade desportiva mais praticada no Brasil, o viveiro onde se perpetua a tradição do drible e crescem os melhores futebolistas técnicos: Rivelino, Zico, Ronaldo, Ronaldinho, Neymar, todos eles, quando eram crianças, fizeram a sua aprendizagem através do futsal.

Joga-se cinco contra cinco num campo coberto do tamanho de um campo de basquetebol, onde a bola «circula como um disco no gelo», escrevia o jornalista britânico Alex Bellos.

Os tornozelos rodam, as articulações fazem piruetas, só aqueles macaquinhos sobressaem em espaços tão reduzidos. Vivacidade, elasticidade, destreza, no futsal, mais do que na relva e na praia, os dribles e os truques devem ser impecáveis. Criatividade: no Japão, onde Zico treinou durante muito tempo, afirma-se que ele ficava furioso porque os jogadores nunca, mas nunca, se desviavam das suas instruções, eram incapazes de improvisar, de o surpreender. Bushido e malandrices. O samurai não é irreverente.