· Cidade do Vaticano ·

Reflexão litúrgico-pastoral
Para a solenidade da Ascensão do Senhor

A missão do anúncio compete a todos

 A missão do anúncio   compete a todos  POR-019
08 maio 2024

Também hoje, Solenidade da Ascensão do Senhor, dada a riqueza e a delicadeza da filigrana do texto do Evangelho de Marcos 16, 15-20, que constitui a sua conclusão, e que vamos ter a graça de escutar, parece-me importante começar por colocar o texto diante dos nossos olhos, começando com o v. 14:

«16, 14Em último lugar fez-se ver aos Onze, enquanto estavam à mesa, e reprovou a sua incredulidade e dureza de coração, porque não acreditaram naqueles que o tinham visto ressuscitado. 15E disse-lhes: “Indo por todo o mundo, anunciai o Evangelho a toda a criatura”. 16Quem acreditar e for batizado, será salvo, mas quem não acreditar, será condenado. 17São estes os sinais que acompanharão os que acreditarem: no meu nome, expulsarão demónios, falarão línguas novas 18e, se pegarem em cobras nas mãos e beberem veneno mortal, não lhes fará mal; imporão as mãos aos doentes, e ficarão bem.

19O Senhor Jesus, depois de ter falado com eles, foi elevado ao céu, e sentou-se à direita de Deus. 20Eles, então, tendo saído, anunciaram o Evangelho por toda a parte, enquanto o Senhor cooperava e confirmava a Palavra com os sinais que a acompanhavam» (Mc 16, 14-20).

2. Trata-se da última página do Evangelho de Marcos, certamente tardia, talvez do séc. ii , mas grandiosa e imponente, e cheia de referências significativas para a vida cristã de qualquer tempo e lugar. Esta página fecha o Evangelho de Marcos, condensa-o e encerra-o numa grande inclusão literária e teológica através dos termos «anunciar», «acreditar» e «Evangelho», usados a abrir o Evangelho (1, 14-15) e a fechar o Evangelho (16, 15-16). Mas o anúncio do Evangelho a toda a criatura (16, 15) reclama também o início da inteira Escritura, a página da Criação, com o ser humano a receber de Deus o mandato de dominar a criação inteira (Gn 1, 26 e 28). É ainda nesse sentido de inclusão literária e teológica com a Criação, que as cobras, uma das quais dominou então o ser humano (Gn 3, 1-5), são agora dominadas (16, 18), do mesmo modo que é o bem (kalôs), em vez da cura, que agora se estabelece sobre os doentes (16, 18). É outra vez o eco intertextual da Criação onde, no texto grego dos lxx , o bem, bom e belo (kalós) impregna por completo a Criação inteira, atravessando-a por oito vezes (Gn 1, 4.8.10.12.18.21.25.31 lxx ). No texto hebraico, é por sete vezes que soa esta nota com o termo thôb, que passa o mesmo significado de bem, bom e belo (Gn 1, 4.10.12.18.21.25.31).

3. «O Senhor Jesus» (ho Kýrios Iêsoûs) (16, 19), única menção em todos os Evangelhos, enche a cena, quer para recriminar a nossa incredulidade e dureza de coração (16, 14), quer para continuar a manifestar a sua confiança em nós, dado que, não obstante a nossa incredulidade e, talvez por isso mesmo, insiste em enviar-nos e acompanhar-nos na missão «total» do Evangelho que agora nos confia (16, 15 e 20). Cai aqui por terra uma certa retórica de santidade, que falsamente defende que só os santos são idóneos para a missão de anunciar o Evangelho! E ganham espaço os que fracassaram, como os Onze e nós com eles e como eles, que anunciam a Ressurreição de Jesus, que continua vivo e atuante no meio de nós, e a prova disso somos nós, pois Ele mudou a nossa vida de fracassados e desistentes para testemunhas fiéis e transparentes! E esta mudança operada em nós tem de fazer parte do relato que fazemos do Evangelho.

4. Cinco temas enchem a página, o pátio, o átrio sempre entreaberto do Evangelho: 1) a autoridade soberana e nova de Jesus assente, não na distância e tirania, mas na proximidade e familiaridade; 2) a missão total a nós confiada; 3) o mundo novo e bom, sadio e otimizado que brota da prática do Evangelho; 4) o envolvimento de todos; 5) a Presença nova e sempre ativa e comprometida do Ressuscitado connosco.

5. A soberania nova, próxima e familiar de Jesus fica registada no facto de toda a operação ser realizada no «nome de Jesus» (16, 17), mediante envio seu (16, 15), com a sua Presença cooperante (synergéô) (16, 20) e confirmante (bebaióô) (16, 20), o mesmo verbo da Confirmação sacramental (bebaíôsis). Etimologicamente, deriva do verbo baínô, que significa «caminhar», e supõe terreno firme e sólido (bébaios) sobre o qual se pode caminhar com destreza e segurança. É esta destreza e solidez que a Confirmação confere aos confirmados. Sem esquecer nunca que firmeza e solidez, em chão bíblico, remetem sempre para fidelidade e confiança no domínio interpessoal. A não esquecer também, neste contexto, que só um verdadeiro soberano confia a sua história e a sua missão a gente como nós, que só deu até agora sinais de fraqueza e de pouca ou nula fiabilidade. Um grande tema bíblico desde a Criação: a omnipotência de Deus como que limitada pela nossa liberdade, concedendo-nos aqui a imensa dignidade de partilhar connosco a sua autoridade, deixando também nas nossas mãos a capacidade de fazer surgir um mundo novo, cheio de bem, de bondade e de beleza.

6. A missão total a nós confiada, que deve envolver «todos, tudo e sempre» (Bento xvi , Mensagem para o 85º Dia Missionário Mundial, 2011), é retratada com tinta excecional em Marcos, ao usar as expressões «indo por todo o mundo» (16, 15), «anunciai o Evangelho a toda a criatura» (16, 15), e «tendo saído, anunciaram por toda a parte» (16, 20). É a missão total, e não por etapas. Jesus não recomenda: «A começar pela rua tal, ou pela cidade tal...». Portanto, esta missão total também não é para levar a cabo ao sabor das emergências (ver a decisão de Jesus em Mc 1, 38-39; Lc 4, 42-43). A ventania do Pentecostes ou o vento suavíssimo do Espírito deve levar alento a toda a criatura, da mesma forma que a semente do Evangelho é para ser lançada por toda a parte, em todo o tipo de terreno, como na parábola do semeador, sem qualquer estudo prévio de rentabilidade.

7. Mundo novo e bom, salvo, sadio e saudável, otimizado, sem forças demoníacas e sem ponta de veneno. Esta ligação e eco intertextual das narrativas da Criação faz ver a missão como nova criação, em que o homem, finalmente transparência do Deus Criador e Senhor, sem raivas nem ódios, ciúmes e violências, «domina» a terra e os animais, isto é, estabelece a mansidão, a doçura da palavra e a harmonia sobre a terra (Gn 1, 26-31). Até a cobra perde a astúcia e o veneno mortal que ostenta em Génesis 3, 1-5, e mostra-se mansa e sujeita ao domínio das mãos do homem. À luz da missão salutar e salvadora, nenhuma criatura é portadora de veneno (cf. Sb 1, 14), e a doença é vencida pela bênção que sai das mãos e do coração do missionário, outra vez à imagem de Deus, que enche este mundo de bem (kalôs lxx ) (16, 18), que é uma nota que atravessa o texto da Criação, vincando ainda mais a inclusão literária e teológica já atrás acenada. Note-se que, em vez da presença do bem, em situação de doença, seria de esperar, não o advérbio bem (kalôs), mas o verbo curar, que se usa habitualmente em situações idênticas, dito com o verbo therapeúô (cf. Mt 4, 24; 8, 16; 10, 1.8; Mc 1, 34; 3, 10; 6, 13; Lc 4, 40; 6, 18b; 9, 1.6) ou iáomai (Mc 5, 29; Lc 6, 18a.19; 9, 2). De notar que a nossa Eucaristia, que é com certeza a mais alta forma de oração, catequese e evangelização, assenta as suas raízes mais fundas na bênção e em bendizer, sendo a sua expressão mais antiga «O cálice da bênção que bendizemos» (1 Cor 10, 16). Celebrar a Eucaristia é, pois, sempre um grande exercício de «bendizer», isto é, de dizer bem, e não mal, e implica mudar a nossa vida toda da clave do mal para a clave do bem. O mal divide. O bem une. Levar uma comunidade a celebrar a Eucaristia é sempre transmitir aos seus membros uma nova cultura. Não de maledicência, mas de aprendermos a pensar, querer, ver, falar e fazer bem, belo e bom, que é a fonte da comunhão.

8. Nós já sabemos, são muitos os documentos a dizê-lo, que esta missão do anúncio do Evangelho de Jesus compete a todos. É por natureza que a Igreja é missionária, diz-nos o Decreto conciliar Ad gentes, n. 2, e «evangelizar constitui, de facto, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua identidade mais profunda», insiste Paulo vi , na feliz Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi [1975], n. 14. Por isso, «a pregação do Evangelho não é para a Igreja um contributo facultativo, mas um dever que lhe incumbe» (Paulo vi , Evangelii nuntiandi, n. 5; Bento xvi , Mensagem para o Dia Missionário Mundial, 2012). É a maneira de ser da Igreja, e é a nossa maneira de ser, dado que é a sua e a nossa identidade, vocação e graça. Mas de entre todos os Evangelhos, só esta página seleta de Marcos diz expressamente que os belos e maravilhosos «sinais» que acompanham o anúncio do Evangelho são realizados por todos os que acreditam (Mc 16, 17-18). Esta extraordinária «democratização» das maravilhas operadas por Deus por intermédio de todos os que acreditam serve para datar este texto do século ii . No século i , estes prodígios estavam confinados aos Apóstolos e, a partir do século iii , será o clero o seu proprietário. Magnífico texto este, que põe todo o povo de Deus a realizar maravilhas! Portanto, queridos irmãos e irmãs, sede o que sois, sempre e em toda a parte, e não deixeis por mãos e corações alheios, as maravilhas do Evangelho que Deus vos dá para vós realizardes! É este o combustível do «Evangelho da alegria», que Deus deposita largamente no coração de todos os seus filhos e filhas, para consolação nossa e de todos os nossos irmãos e irmãs.

9. Chegados aqui, à última página do Evangelho de Marcos, ainda podemos verificar dois gestos opostos e significativos. Jesus terminou o seu caminho, é elevado ao céu, e senta-se à direita de Deus (16, 19), sinal de proeminência e de bênção. E os discípulos de Jesus, que têm agora o mundo inteiro pela frente, levantam-se, saem, e anunciam o Evangelho (16, 20). «Sair», hebraico yatsa՚, é o verbo clássico do Êxodo, mas é também, de forma muito significativa, o verbo do nascimento. «Sair de si» é um dos dinamismos mais poderosos do Evangelho, que o Papa Francisco lembrou e pediu à Igreja (Evangelii gaudium [2013], nn. 20.23.27.97.259.261). A Evangelização, que implica este dinamismo, continua a ser a tarefa central e sempre nova dos discípulos de Jesus de todos os tempos. «A Igreja existe para evangelizar» (Evangelii nuntiandi [1975], n. 14). Fica ainda claro que a Ascensão de Jesus não o retira do nosso convívio, Ele continua connosco, cooperando e confirmando a missão da Evangelização que nos confiou.

D. António Couto
Bispo de Lamego